Valores, Tolerância e Assertividade
A transmissão de valores é uma das missões parentais. A partilha, o respeito para com o outro, a honestidade, a verdade são alguns dos valores que muitos pais procuram passar aos seus filhos com o objectivo de os verem tornar-se boas pessoas. E como se faz essa passagem? Como se ensina as crianças a serem boas para os outros e a exigir o mesmo para si?
A ideia de os pais transmitirem valores aos filhos parece tão consensual que não se pensa neste acto educativo como passível de dúvidas e necessidade de estarmos conscientes. Até nos vermos confrontados com uma tensão entre os nossos valores e os de terceiros.
Muito embora haja uma tendência para encarar os valores como universais, cada família tem a sua dinâmica e os pais não valorizam todos a mesma coisa da mesma maneira. Por vezes até há valores partilhados, mas que são passados de maneiras diferentes em cada família.
Por isso, é provável que em algum momento nos vejamos perante uma situação de confronto de valores entre os nossos filhos e os filhos dos outros.
Entre um “empresta o brinquedo” e um “o brinquedo é do menino”, entre um “não se bate” e um “ele bateu-me” é preciso tolerância, discernimento, coerência e assertividade.
Uma atitude de rejeição imediata dos outros, por exemplo, não transmitirá respeito e tolerância. Uma atitude de alteração do procedimento que ensinamos trará confusão.
Como manter o nosso ensinamento sem desrespeitar o dos outros?
Como obedecer aos nossos valores fazendo valer os nossos direitos?
Mais do que uma cartilha de frases bonitas e feitas que se vão debitando ao jeito de um ditado para decorar, os valores transmitem-se por observação do modelo.
Inês Afonso Marques, psicóloga coordenadora da área infanto-juvenil da Oficina de Psicologia, explica via correio electrónico que «o modo como os pais se relacionam com as outras pessoas, como ajudam, manifestam desagrado, toleram, aceitam os outros e a realidade serve de exemplo à forma como a criança integrará os valores» e essa passagem de valores dependerá dos valores que os pais conheçam.
Luís Félix Marques, também psicólogo e que exerce parte da sua actividade em contexto de creche e jardim de infância acrescenta que, para além de a «passagem dessa formação dever ser antes de mais pela própria postura e pela forma que pai e mãe têm de estar no mundo», os valores não podem ser passados por um modelo de “aula” ou cartilha, não só porque não surte efeito se não for acompanhada pelo exemplo, mas também porque os valores não são totalmente estanques e, entrando em confronto uns com os outros, poderá ser necessário fazer adaptações. «Isto do comunicar valores não é uma grelha, penso que é mais uma continuidade» e um avaliar das situações, defende Luís Félix Marques. «Os valores não se passam como uma aula. Os valores [passam-se] perante as situações. Se seguirmos uma cartilha, vamos errar, porque esta não tem a maleabilidade da realidade».
A multiplicidade das situações do dia-a-dia exige dos pais coerência e tolerância.
A primeira é importante para que as crianças se sintam seguras. A segunda ensina para o respeito pelos outros.
Como se equilibra então esta coerência de valores com tolerância? A tolerância é um valor que as crianças poderão aprender sem que os pais sejam incoerentes. É possível aos pais fazer a criança entender que os valores transmitidos são os que eles consideram importantes, mas que existem diferenças entre as pessoas. «Desde que devidamente enquadrada a situação, estamos a contribuir para o treino da tolerância. Este tipo de “cedência” não é “conivência” ou acordo. Os meus valores mantêm-se, são é diferentes dos da outra pessoa…», exemplifica a psicóloga.
Utilizando um exemplo prático, não é incoerente que um pai incite o seu filho a partilhar e que respeite um terceiro menino que não o quer fazer.
Inês Afonso Marques defende que «assinalar que o brinquedo é de outra criança nada tem de negativo, desde que não haja uma proibição associada. Ou seja, um pai salientar que o brinquedo é de outro menino e que isso implica um pedido, para emprestar ou para brincar, é positivo e constitui uma forma de passagem de valores». Perante a situação descrita haveria incoerência se «a postura [fosse] do tipo “tu deves emprestar as tuas coisas, mas não podes brincar com as dos outros”», clarifica.
Também Luís Félix Marques – que realçou a maleabilidade da realidade, em que por vezes até podemos ter de adaptar a “intensidade” de um valor mediante situações diferentes – considera que os pais podem manter a coerência e até reforçar o valor quando ensinam, por exemplo, os filhos a partilhar e depois, ao serem cobrados porque um terceiro menino não faz o mesmo, lhes explicam que mesmo tendo de respeitar a vontade do menino em não emprestar o brinquedo, os pais consideram que a partilha que lhe ensinaram continua a ser o que eles lhe querem transmitir.
Diferente será se por existirem terceiros envolvidos os pais não mantiverem o seu ensinamento ou se os fizerem adoptar um comportamento contrário por se sentirem intimidados por esses mesmos terceiros. «Porque está ali o pai de outro menino anulo o que estou a explicar?», questiona Luís Félix Marques. Se fizer isso, «estou a ser inseguro, incoerente, medroso e estou a transmitir uma coisa que ele não me perdoa, a insegurança», afiança.
E como ensinar à criança que ser boa não significa ser passiva?
Luís Félix Marques explica que, no caso de crianças mais pequenas, ajuda-se a criança a perceber que os seus valores implicam respeito por si e pelos seus direitos, observando, sinalizando as situações e explicando que “isto não se faz”. Quando as situações vão sendo sinalizadas, as crianças, mesmo pequenas, vão tendo noção dos limites dos seus direitos e dos outros. «Os meninos, antes dos dois anos, vê-se na sala de um ano para os dois, têm a sua ética e a sua moral. Veem a educadora repreender um [deles] e têm noção de que há uma barreira que o amiguinho transgrediu», ilustra o psicólogo.
Outros dois aspectos, interligados, são o desenvolvimento emocional e a assertividade, descrevem os dois psicólogos, apontando como exemplo prático a capacidade de as crianças entenderem e gerirem as suas frustrações e de as exprimirem. «Ajudar a criança no seu desenvolvimento emocional, explorando como se sente com a situação e ajudando-a a encontrar formas de gerir as emoções que surgem (por exemplo, a zanga ou tristeza porque o outro se recusa a emprestar um brinquedo)», explica a psicóloga, é uma maneira de as ajudar na aprendizagem de valores e na sua gestão.
E com esses ensinamentos, os pais estão a contribuir para a assertividade, isto é, «ajudando a criança a perceber que é importante defender os seus direitos e expressar os seus pensamentos e sentimentos de forma clara, respeitando o ponto de vista do outro. É diferente quando uma criança a quem batem não faz nada, de uma criança a quem batem que consegue dizer “Pára. Não gosto quando me fazes isso”», exemplifica Inês Afonso Marques.
Neste campo, Luís Félix Marques acrescenta ainda dois ensinamentos que considera serem úteis na interiorização de valores e direitos. O primeiro é a capacidade de dizer não. «É das primeiras palavras que as crianças aprendem», afirma, e os pais podem ajuda-las a utilizá-lo correctamente.
Esta capacidade de dizer não será útil para que as crianças saibam respeitar não só o espaço e os valores dos outros, mas também respeitem os seus, impondo limites aos outros. «As crianças têm de ter essa aprendizagem de impor limites aos outros».
Também neste aspecto, continua o psicólogo, ajudará se a postura dos pais servir de modelo. E também aqui o estar atento, o ver se a criança se consegue exprimir e ser equilibrada no que diz respeito à tolerância para com os outros e dos outros para consigo.
Porque tal como os valores, entre os quais se encontram a tolerância e o respeito, a assertividade também se aprende.
Rita Bruno