Algarve de África
À boa maneira árabe, a estrada até Tetuão fora transformada numa longa avenida com canteiros floridos, separando o monte pejado de oliveiras e pinheiros-mansos, verdadeiro prolongamento da Andaluzia e do Alentejo, de uma série de povoações metamorfoseadas em aldeamentos turísticos e campos de golfe, prontos ou em preparação. Restinga Smir, Mdiq, Cabo Negro, Martil. A costa mediterrânica de Marrocos apressava-se a seguir o exemplo do Algarve e da Costa del Sol. Transformava-se gradualmente num dos retiros predilectos para reformados europeus endinheirados.
Da pena sempre inspirada da escritora e historiadora Elaine Sanceau, que, na década de 1950, por ali andou, respigo a seguinte passagem: “Algarve de África: montes ondulantes revestidos das moitas verdes de uma vegetação rasteira; pinheiros-mansos, como guarda sóis abertos, a espalharem sombras nas alturas”.
Algarve de África, sim. Não só pelas similaridades geográficas, mas porque a partir de 1471, com a tomada de Arzila e de Tânger por D. Afonso V, os reis portugueses passariam a juntar ao título de rei de Portugal o de “rei dos Algarves d’aquém e d’além mar em África”.
Para chegar de Ceuta a Tânger por terra tinha duas opções. O caminho mais curto, uns meros sessenta quilómetros, passava por Alcácer Ceguer. Aquando das aventuras de D. Henrique, era um trajecto perigoso, visto atravessar um vale apertado entre montes ermos, sujeito às ciladas dos angeras, aguerrida tribo berbere. Armado em legionário romano, o Infante, de olho em Tânger – a par de Ceuta, o outro único porto com baía de feição virado para a Ibéria – quis tomar tal atalho, mas logo seria travado por essa versão local de lusitanos, que obrigaria a coluna de exploração a retroceder. Optou-se então por se seguir em direcção ao Sul pelo caminho mais longo, uns cento e dez quilómetros, o que obrigaria a passar por Tetuão, na época praticamente despovoada. Seria reedificada mais tarde, tornando-se num activo centro de corsários. «Um único mouro de Tetuão valia mais que mil em outra parte», comentava, em 1514, o capitão de Ceuta. Por essa razão, D. Manuel quis erguer fortaleza no porto vizinho, enviando Pedro de Mascarenhas para sondar a barra do rio de modo a encontrar um sítio adequado. A dificuldade de desembarque naquela costa, porém, dissuadiu-o do projecto.
A 9 de Setembro de 1437, um exército de quase dez mil homens encetava um caminho terrestre de quatro dias rumo àquela que seria a primeira e malograda tentativa de conquista da tão apetecida cidade portuária. Nessa mesma senda, décadas mais tarde, morreria D. Duarte de Meneses, «defendendo o rei contra a gente mais aguerrida de norte de África».
Ainda hoje se opta por essa estrada para atingir a cidade do Estreito, uma das várias designações pela qual Tânger é conhecida entre os marroquinos.
A longa avenida era interrompida por rotundas decoradas em toda a volta com enormes bandeiras nacionais. Em todas elas, duplas de polícias constituíam o único entrave à pacífica progressão de todo o cristão, muçulmano ou pagão. Devidamente equipados com aparelhos de medição de velocidade montados num tripé, os agentes anunciavam a sua presença com duas placas circulares colocadas no asfalto, embora não houvesse qualquer veículo oficial à vista. Provavelmente eram ali depositados no início do dia e recolhidos ao fim do mesmo. Avistada a primeira placa, havia que diminuir a velocidade; já o intimidante “Halte” da segunda obrigava a parar, embora isso pudesse exasperar quem seguisse na retaguarda, pois podia dar-se o caso de os polícias estarem entretidos com uma outra coisa qualquer, ocultos em parte incerta ou ostensivamente especados no meio da estrada sem nada para fazer, quais senhores da estrada e redondezas.
Como era o Hassan que ia ao volante do Toyota, as ordens de paragem pelos ditos sucediam-se. Uma das vezes foi porque Hassan desrespeitou um sinal de stop; as outras duas, muito simplesmente, porque aos polícias lhes apeteceu mandar-nos parar. Entretanto, eu ia servindo de álibi, visto que os marroquinos não estão autorizados (pelo menos oficialmente) a ter namoradas estrangeiras. Portanto, se acompanhavam estrangeiros, pressupunha-se que fossem guias, e para serem guias deviam estar munidos da respectiva autorização. Não nos soube dizer Hassan se essa era lei antiga, entretanto anulada, ou se continuava em vigor, o certo é que ele, para evitar aborrecimentos de maior monta, todas as vezes que o interpelavam metia a mão ao bolso e de lá sacava umas boas dezenas de dirhams para aplacar a gula dos agentes, que, à falta do aguardado presente, iriam com certeza encontrar motivos para nos atrasar a viagem.
«– Não faças isso. Assim só contribuis para a continuidade do sistema», dizia Isabel.
De nada valia o conselho da namorada. Hassan, temente à autoridade como qualquer marroquino, sabia o que a casa gastava. Além do mais, tivera não há muito tempo uma má experiência. Acusado de roubar pedras fossilizadas no deserto, fora mantido no cárcere quinze dias até pagar a devida caução: um milhar de euros, direitinhos para a algibeira do chefe da polícia de Zagora. Para Hassan, essa seria, doravante, uma pesada dívida a saldar junto de quem lhe tinha emprestado tão elevado montante. O berbere, contudo, fazia a distinção devida entre os diferentes tipos de forças de segurança.
«– La gendarmerie, si que es buena. Mas la polícia, no», dizia ele. Esse “no” viera acompanhado de um simulacro de cuspidela, sinal de profundo desprezo.
Joaquim Magalhães de Castro