Terra verde à vista
Sabia bem que a passagem da fronteira em Rosso não iria ser pêra doce, e por isso estava algo apreensivo. Enfim, não era propriamente a periclitante travessia do rio numa barcaça a remos que apoquentava os estrangeiros, antes os múltiplos e perversos estratagemas utilizados pelos corruptos funcionários da imigração mauritanos, de modo a conseguir os tão apetecidos euros. De facto, lá estavam os ditos-cujos, abrigados da canícula do meio-dia em frente a gigantescas ventoinhas. Indolentes e hostis, aguardavam a chegada de uma possível vítima. Um deles, bigode farto a iludir uma cara fechada, folheou o meu passaporte e meteu-o no bolso da farda, voltando a limar as unhas, tarefa que o ocupara até então. Pacientemente, perguntei-lhe por que razão fazia aquilo em vez de mo carimbar, como era seu dever. Primeiro, nada disse; mas como insisti, muito educadamente, alegou que deveria aguardar a chegada de mais estrangeiros para assim poder processar a entrada em conjunto. É claro que não chegou nenhum outro estrangeiro, pois Rosso era fronteira com fraca afluência nessa época. E ali fiquei, talvez umas duas horas, tentando não mostrar sinais de ansiedade ou irritação. Sentei-me junto a eles, pronto a ficar ali o tempo que fosse necessário. Vendo que nada ia conseguir da minha parte, o bigodaças, após ter trocado umas palavras com os comparsas (cada um deles com o ar mais facínora do que o outro), atirou-me literalmente o passaporte para as mãos, depois de lhe ter colocado o carimbo de saída. E fê-lo com raiva, devo dizê-lo. Aliviado, dirigi-me de imediato para a barcaça que me esperava e onde aguardavam quatro senegaleses que fizeram comigo a reconfortante travessia do Senegal.
Zurara descreve bem esse momento primordial nas viagens a sul: “E passando além acharam um rio grande que é chamado Senega, muito povoado, e falaram os cristãos com essa gente pelos homens que consigo levavam, e trataram de paz com eles, e fizeram comércio, e daí traziam muitos pretos por compra”. Também Cadamosto, no seu livro “Navegações”, nos fala disso: “Depois de passarmos o dito Cabo Branco, com ele à vista, navegando por nossas jornadas, chegamos ao rio chamado de Senega, que é o primeiro rio das Terras dos Negros, naquela costa; o qual rio separa os negros dos pardos chamado azenagues; e separa também a terra seca e árida da terra fértil que é o País dos Negros”.
Se até então o processo tinha sido conflituoso, e o comércio era sobretudo recolher escravos, a partir dessa altura tentar-se-iam estabelecer relações de amizade com os régulos locais passíveis de resultar em trocas frutíferas. O rio servia, já naquela época, de divisória. Uma fronteira entre dois mundos diametralmente opostos. Cadamosto deixa isso bem claro e mostra espanto com a cor dos habitantes daquelas bandas: “E maravilhosa coisa me parece, que para cá do rio todos sejam negríssimos: e, além de muitos pretos, grandes e gordos, e bem constituídos; e para lá sejam os sobreditos azenegues, pardos, enxutos e de pequena estatura”. No seu texto há ainda outras comparações: “E para cá do dito rio, toda a região é árida e seca; para lá, abundante de enormes árvores e de diversas espécies de fruta, novas para nós por não haver tais frutos em nossas terras. E esta região é muito fértil”.
Também me deu um enorme prazer presenciar o verde à minha frente e todo aquele lençol de água barrenta, aparentemente de pouca correnteza, ambos muito bem-vindos, isto apesar da tosse incomodativa, seca e curta, que se apoderou de mim precisamente no momento da lenta travessia, e que se intensificaria, já na margem oposta, no interior da barraca miserável onde mostrei o passaporte a um polícia senegalês que sem delongas ou qualquer truque me carimbou o visto de entrada no País.
Não foi fácil conseguir transporte para Saint-Louis. Acabaria por cumprir a jornada em duas mangas. Primeiro, num carro alugado em parceria com um senegalês, tal como eu, apeado; seguidamente, após horas de espera numa povoação vizinha à reserva natural do Ndiael, num furgão que nos levou até à reputada cidade, onde chegámos ao cair da tarde.
A Saint-Louis histórica situa-se numa pequena e tranquila ilha rectangular em pleno estuário do rio Senegal. Comparada com o bairro moderno na margem oposta, dir-se-ia um oásis de sossego. A respeito dela, Diogo Gomes escreve o seguinte: “o qual rio é largo (grande na boca mais de uma milha); e forma-se ainda uma outra boca no dito rio, um pouco mais adiante, formando-se uma ilha ao meio; e vai dar ao mar por duas bocas” . Noutra passagem mais adiante, acrescenta: “E de notar que do Cabo Branco até este rio há 380 milhas, e toda a costa é areia até junto da boca do rio deste, vinte milhas aproximadamente; e chama-se a Costa de Anteronte, a qual também é de Azenaques, isto é, pardos”.
No posto de turismo local, como seria de esperar, não há uma única referência a esse pioneiro advento. Segundo informa uma placa de metal, a cidade nasceu com o estabelecimento dos franceses, em 1659, não havendo qualquer menção à feitoria portuguesa que ali existiu de forma intermitente. Chamei a atenção para a omissão e a menina atrás do balcão olhou-me interrogativamente como quem diz “não tenho culpa disso”. De facto, não tinha. Mas não podia deixar de fazer o reparo.
L. Faidherbe, afamado governador do Senegal colonial, com direito a estátua em lugar de destaque, deu nome à ponte de ferro com arcos ogivais concebida por Gustave Eiffel, em 1886. Um bom exemplo da engenharia do século XIX, emblema maior da cidade. Originalmente destinada a ligar as margens do Danúbio, acabaria por unir a área urbana continental ao centro histórico insular. Uma década antes, em 1873 e 1874, residira em Saint-Louis o escritor Pierre Loti, desempenhando funções de oficial da marinha. A sua vivência no bairro norte servir-lhe-ia de inspiração para o aclamado “Romance de um Spahi”.
Joaquim Magalhães de Castro