As cidades santas
Para bem apreciar a beleza do planalto há que passear pelas redondezas de Atar, feitas de montanhas esboroadas e cumes achatados, verdadeiras mesas, arbustos e terra vermelha. O Parque Nacional de Terjit, por razões óbvias, surge no topo das prioridades do candidato a visitante, que se alojará na povoação com dúzia e meia de palhoras cónicas que dão nome ao parque, plantada num pequeno oásis de palmeiras. Ali, com uma diária entre mil e mil e quinhentos dirhams, pode degustar compota de tâmaras e visitar as pinturas rupestres de Legouera, a quarenta minutos de caminhada.
Para mim, bem mais atractiva foi a opção oeste, rumo à aldeia de Azougui, onde, abrigadas pelo palmeiral de Teyarett, subsistem ruínas de uma fortaleza, uma necrópole e outras construções antigas.
A ausência de qualquer tipo de transporte que pudesse ser considerado de utilização pública obrigou-me, uma vez mais, a recorrer à boleia. Calhou-me na rifa uma Toyota de caixa aberta conduzida por um avôzinho simpático de sotaina azul e turbante negro, acompanhado pelos quatro netinhos. A determinada altura, o homem parou a viatura e descarregou os sacos de serapilheira que transportava, e ali os deixou, na berma da estrada.
Prosseguimos viagem até depararmos com uma falésia. O magnífico vale que se abria diante de nós merecia os créditos a ele atribuídos por Al-Bakri, cronista viajante do distante século XI. Escrevia ele: “A fortaleza de Arki ergue-se no meio de vinte mil palmeiras”. Desses milhares sobravam umas boas centenas de árvores, aparentemente em excelente estado, e muita pedra solta e cacos intervalados com os buracos resultantes das escavações arqueológicas feitas na região ao longo das últimas décadas. Da fortificação restavam alguns muros e, num deles, uma porta, junto à qual uma placa de madeira informativa recordava-nos que Azougui foi a primeira capital do poderoso Império Almorávida. Também o geógrafo Al-Idrisi, contemporâneo da Idade Média, chamou a atenção para a importância desta cidade, “ponto de paragem obrigatório na rota transariana” entre os reinos de Marrocos e do Gana.
Azougui foi um dos locais habitados pelos misteriosos bafours e defendida pelos terríveis cães, daí o nome Medinet el-Kilab, “a cidade dos cães”, como era também conhecida. O coronel francês Modat, que por ali passou em 1920, assinala, no livro “Portugais, Arabes et Français dans l’Adrar Mauritaniene”, uma rota portuguesa de Arguim a Ouadane que contornava as dunas de Azeffal, passando por Zoug, Atar e Baten, e acredita que sejam de origem portuguesa algumas das ruínas, não só de Azougui (houve aqui diversos tipos de ocupação), mas também de Hofrat, nas imediações de Ouadane.
Os actuais aldeões cultivam milho onde podem e vivem em torno das ruínas, em palhotas cónicas e quadrangulares de uma só porta ou casas de argila com cercas improvisadas de paus e arames. Enterram os mortos na areia do deserto, não muito longe do local onde habitam, assinalando em baixo-relevo o nome do defunto em pequenas lápides de xisto.
Inspirado pelos relatos de Modat, segui para leste no dia seguinte, rumo a Chinguetti, uma das sete cidades santas do Islão. Muçulmano que se preze pode não saber onde fica a Mauritânia mas seguramente conhece Chinguetti, a Bilad Chinget. O minarete da mesquita local, “a mesquita de sexta-feira”, é um dos mais importantes símbolos da Mauritânia e, como tal, mereceu a imortalização nas notas de cem ougyas.
Engolida pelas areias do deserto, a ancestral Abbayr está na origem desta cidade-caravana fundada no século XIII. Dois séculos depois, os textos portugueses seriam os primeiros a fazer-lhes referência. Valentim Fernandes, por exemplo, dizia que “no interior desta montanha de Baffores existem quatro cidades e uma vila e quatro rios sem água. Das cidades, a mais importante é Ouadane; a segunda, Oulili; a terceira, Chinguetti; e a quarta, Tinigi”. Na mesma época, Duarte Pacheco Pareira, no “Esmeraldo de Situ Orbis”, afirmava que a “quinze ou vinte léguas encontram-se três pequenas aldeias habitadas por azenagues”, sendo a primeira Synguety (Chinguetti); a segunda Tyntguuhy (Tinigi); e a outra, Marzy (não identificada). Luis de Cadamosto, por sua vez, descrevia-a como “uma pequena aldeia habitada por azenegues” que viviam sob a hegemonia dos Hassan Wadaya.
A expedição marroquina que chegou a Ouadane no século XVI, pelos vistos, não demonstrou interesse por Chinguetti, pois só a partir do século XVII se transformou num importante centro da vida económica e cultural da região. Viviam ali vinte mil pessoas, entre as quais sábios das mais diferentes áreas do saber. Da Teologia à Matemática, da Medicina à Astronomia, da História à Geografia. Passagem obrigatória dos peregrinos com destino a Meca, Chinguetti passou também a ser designada “Cidade das Bibliotecas”, pois ali se arquivavam milhares de livros, naturalmente preservados pelo clima seco do deserto. A proximidade das salinas era um potencial de prosperidade económica que se revelaria nesse mesmo século, com o declínio do império sudanês e o interesse dos europeus (portugueses) pelas riquezas da região.
Joaquim Magalhães de Castro