Cidade dos ventos alísios
No decorrer da viagem até Mogador eu e Soussi não conversámos apenas sobre questões sociais, meio ambiente e política. Soussi também me forneceu informações relevantes para a minha investigação.
«– Pouco antes de Tarfaya, na fronteira com o Saara Ocidental, há um local que lhe deve interessar. Chama-se Porto Cansado».
Dizia isto apontando para um ponto no mapa ao qual os portugueses denominavam Mar Pequeno, pois há aí uma reentrância do mar em terra.
«– O mapa não a indica, mas essa reentrância existe», garantia Soussi.
À medida que nos aproximávamos de Mogador, a presença do areal era cada vez mais evidente. Viam-se prospectores de petróleo junto a furos recentemente abertos, e, ao longe, aquilo que aparentava ser aldeias de pescadores. O deserto ensaiava ali uma surtida, avançando as suas dunas onduladas quase até à praia. Repentinamente – a estrada seguia agora pelo interior – vimo-nos no meio de uma mancha verde, que mais não era do que uma floresta de tuias, árvore de baixo porte de folhas perenes em forma de escama, com madeira resistente e fruto em pinhas, pequenas e lisas. A tuia, utilizada no fabrico de mobílias e das mais diversas peças de artesanato, é uma imagem de marca de Mogador. Contudo, o símbolo da cidade é a araucaria excelsa (uma das doze espécies de araucárias), de copa cónica, a única que se desenvolve espontaneamente no Hemisfério Norte.
Ao chegarmos àquela que é conhecida como “cidade dos ventos alísios”, deparámos com um painel publicitário relativo a projecto de cooperação alemão na área do saneamento básico.
«– Os alemães investem, porque sabem que isto vai ficar para eles», atirou Soussi.
Como a corroborar as palavras do marroquino, vimos passar na rua uma mulher loura, muito alta, certamente alemã. Talvez, futura residente do bairro já construído, e uma das centenas de estrangeiros diariamente presentes nessa muito turística mas belíssima cidade. Impossível alhear-se dessa realidade.
Entrei pela Bab Doukala, a porta norte, após ter apreciado devidamente as carroças de rodas altas pintadas de azul que servem de táxi, mas só no exterior da almedina, habitualmente estacionadas entre os cemitérios cristão e judeu, ambos fechados, sendo este último muito maior que o primeiro. Fiquei alojado no primeiro hotel que encontrei. Chamava-se Excelsior e aceitou quarenta dirhams por um quarto individual com terraço exclusivo. Nada mau. Luxos desses, com vista para a Skala – a muralha que ladeia a parte leste da almedina – pagavam-se bem mais caros. O único senão era o ténue cheiro a esgoto que o vento transportava… Omnipresentes, as gaivotas, recortadas num céu de um azul intenso, efectuavam voos rápidos, e logo pousavam, por breves minutos, nas lajes do terraço, a poucos metros de mim.
Na verdade, existem duas Mogador. A do bairro norte, a antiga Mellah, com uma parte degradada e uma zona habitacional genuína. E a do bairro sul, bem recuperada (não fosse Mogador património mundial), repleta de oficinas de artesanato, lojas de recordações, restaurantes, livrarias, hammans (banhos públicos) e dezenas de pensões, riades, hotéis e casas de hóspedes para estrangeiros. Mogador é a Kathmandu do continente africano.
A avenida Mohamed Zerktouni atravessa o centro da almedina e desemboca na praça Moulay Hassan, recheada de belas esplanadas e agências bancárias. Tudo ali está no seu lugar, a fazer lembrar as praças dos países europeus mediterrânicos. No fundo, a designação “avenida” induz em erro, pois a Mohamed Zerktouni é uma rua inteiramente pedonal, repleta de gente e animais, ladeada por estabelecimentos dos mais diversos ramos de actividade comercial. O genuíno mundo marroquino surge um pouco mais adiante, junto ao edifício da Alfândega, onde os pescadores descarregam o peixe e ali o vendem numa lota improvisada. Para além dos pescadores e clientes, dezenas de gatos e centenas, muitas centenas de gaivotas disputam os restos dos peixes grasnando livremente.
Do lado de fora da Porta de Marraquexe, dezenas de roulottes e furgonetas de “camping” de matrícula espanhola, inglesa, francesa, holandesa e alemã. Viaturas dotadas de todo o conforto, algumas delas com antenas parabólicas, ordeiramente estacionadas.
A reputação de Mogador crescia de dia para dia, e isso devia-se aos festivais de música. O Festival da Andaluzia Atlântica era já cartaz habitual, em Novembro, e a primeira edição de um festival de reggae ficara adiada devido a diferendos entre os organizadores e a Universal Music Group. Esta multinacional, detentora dos direitos de autor de Bob Marley, acusava-os de utilizar temas do músico jamaicano para promover o evento sem a devida autorização.
A origem da cidade remonta à antiguidade, e foi conhecida por muitos nomes ao longo da sua história. Os primeiros habitantes, no século VI A.C., os berberes, chamavam-lhe Amagdul, “a bem preservada”. Gregos, fenícios e cartagineses fizeram dela um importante entreposto marítimo. Para os romanos era Tamusiga, centro de um florescente negócio de um corante natural cor de púrpura, daí o nome Ilhas Purpurinas. Mais tarde, devido à sua privilegiada posição estratégica, passaria a ser conhecida como “porto de Tombuctu”. Razão suficiente para que aí nos instalássemos, construindo, em 1506, o designado Castelo Real, na base do qual seria erguida a cidade actual. O nome Mogador deriva do santo local Sidi Magdul.
Joaquim Magalhães de Castro