A Menos Leal
Apresentada ao mundo como “uma cidade europeia em África” ou “a âncora para uma imaginária ponte entre dois continentes”, pode dizer-se que o coração de Ceuta – urbe com mais de dois mil anos – está na Plaza de Africa, onde a Igreja de Nossa Senhora de África substituiu a mesquita principal da cidade, na qual D. João I armou cavaleiros dois dos seus filhos após a batalha que alterou o rumo da nossa história. A resistência de Ceuta, à época, parte integrante do reino de Fez, demorou um só dia.
Com uma traça arquitectónica que nos é familiar, o interior da Igreja de Nossa Senhora de África possui uma série de vistosos altares de talha dourada, de onde se destaca, por detrás do altar principal, a estátua da Virgem Maria. Garantem os habitantes locais que o bastão colocado numa das mãos dessa obra de arte, datada do século XVI, é o bastão original do primeiro governador português, D. Pedro de Meneses, embora a hipótese seja pouco credível. Cá fora, no topo da torre das traseiras, vêem-se dois pequenos sinos. Serão os sinos roubados, em Lagos, por piratas mouros, resgatados pelos portugueses aquando da ocupação da cidade, em 1415?
A poucos metros de distância, no terreno contíguo à catedral, um pequeno museu preserva variada parafernália religiosa do período luso. Infelizmente não foi possível visitá-lo, pois a catedral parecia estar permanentemente encerrada, tal como a sede episcopal, mesmo ao lado.
Às muralhas originais da cidade, que remontam ao século X, os portugueses acrescentar-lhe-iam um fosso com escarpa e contra escarpa, sendo as principais estruturas conhecidas como o Baluarte da Bandeira e o Baluarte dos Maiorquinos. O portão da entrada principal, originalmente acessível por uma ponte levadiça, passou a ter capela e ainda hoje há quem se benza quando por lá passa – agora mais frequentemente de automóvel do que a pé. A ponte seria, entretanto, substituída por uma outra em betão. O terreno contíguo à muralha – onde durante décadas se resistiu às repetidas investidas dos mouros, que legitimamente tentavam reconquistar a sua antiga cidade – é hoje ocupado por um hotel de luxo e um comissariado militar. Não deixa de ser interessante ver ali uma dedicatória à estátua do soldado “muerto por la Pátria”, encimada com o brasão português!
Apesar da escolha feita, Ceuta, de certa forma, é ainda portuguesa.
Ao contrário de Macau, que durante o domínio dos Filipes de Ausburgo se manteve fiel à Coroa Portuguesa, merecendo por isso o epíteto “a Mais Leal”, Ceuta optaria por permanecer espanhola após a Restauração de 1640, numa altura em que Castela se confrontava também com revoltas na Catalunha. A notícia da independência chegou em finais de Dezembro, e embora o governador D. Francisco de Almeida simpatizasse com a causa da Casa de Bragança, o ambiente geral, sobretudo entre as famílias mais influentes, era favorável à Casa de Áustria, obrigando-o a ceder, acabando por ser até destituído do seu cargo, em 1641. Filipe IV atribuiria à cidade, em 1656, o título “La Fidelissima Ciudad de Zeuta”. O processo de “espanholização”, no entanto, tinha-se iniciado muito antes, na sequência da derrota de Alcácer Quibir e subsequentes momentos de incerteza vividos nas praças portuguesas de Marrocos. Para travar os intentos da mourama, Filipe II (Filipe I de Portugal) ordenou que as tropas andaluzas prestassem auxílio, passando, pouco a pouco, a guarnição da cidade a incluir contingentes espanhóis. E assim ficaria.
Para o comum dos mortais, Ceuta era local de degredo ou de cumprimento do serviço militar. Entre a população predominava a fidalguia, alguma dela oriunda da própria colónia, onde se destacavam os Andrade, os Mendonça, os Vieira, os Guevara, os Meneses. O mais importante dos Meneses de Ceuta, o governador D. Pedro de Meneses, ficaria imortalizado em diversos locais, fosse em forma de ilustração, nos azulejos da fachada do terminal marítimo; fosse em forma de estátua modernista, no passeio marítimo, onde também se encontra representado o Mahatma Ghandi, pois Ceuta orgulha-se de ser um exemplo de tolerância religiosa e pacífica convivência inter-étnica.
Durante os 254 anos do período português a cidade conheceu o punho, mais ou menos férreo, de setenta e cinco governadores, embora muitos deles tenham ocupado a cadeira do poder pouco tempo. A avulsa informação turística nem sempre respeita a veracidade dos factos no que a essa época diz respeito. Certos panfletos admitem a evidência dos vínculos históricos com Portugal, «pois o escudo e a bandeira de Ceuta mostram claramente que esta cidade foi portuguesa», enquanto outros se limitam a uma lacónica menção à “muralha portuguesa” que serve de apoio ao conjunto defensivo acrescentado pelos espanhóis nos séculos posteriores. Diz-se por ali, e essa é informação consensual, que a bandeira da cidade, com o brasão de armas de Portugal, «foi mandada tecer pela rainha portuguesa Dona Filipa».
Mais do que as palavras, valem as evidências. E a vivência lusa sentia-se não apenas nos monumentos, mas também em realidades hodiernas, como o trabalho da estilista Ana Sousa, com loja recentemente inaugurada, ou o concerto de Dulce Pontes nesse Verão, no Auditório das Sete Colinas, a principal sala de espectáculos de Ceuta.
Joaquim Magalhães de Castro