As fortalezas transportadas
Em tributo ao seu escudeiro – adiantava Tomás Colaço – el rei Dom Sebastião adoptaria o seu nome de família, que era Colaço, e mais tarde viria a casar com a filha do sultão de Fez, e com ela teve descendência. O registo paroquial da Sé de Tânger dá conta, já no início do século XVI, de uma tal Ana Colaço. Seria ela o fruto dos amores de Sebastião com uma moira, justificando assim um velho boato lisboeta de finais de Quinhentos, que, curiosamente, perdurava ainda entre os letrados marroquinos do início do século XX?
A descendência dos Colaços pontuou o sector diplomático, gozou sempre de privilégios, luxos, grandes propriedades, e ainda hoje tem representantes em Tânger. Tomás Colaço mencionava uma sua prima, Anne Gabrielle Bonnet, já sem qualquer apelido português. Esta suposta ascendência real foi um segredo de família bem guardado que seria quebrado por Tomás Ribeiro Colaço, também dramaturgo, que obtivera o segredo do seu pai, emocionado após ter assistido no Teatro D. Maria à peça Dom Sebastião, escrita pelo filho, e de cujo elenco fazia parte Amélia Rey Colaço, ilustre figura da família.
A veia artística é, aliás, uma das características destes Colaço. Um dos seus antepassados, José Daniel Colaço, conhecido como “barão Colaço de Macnamara”, e cônsul-geral de Portugal em Tânger, chegou a ter o pintor Delacroix hospedado em sua casa. O último desses desenhos, com a dedicatória “mon cher Colaço”, representa o barão.
Durante seis meses, Delacroix viajou com o meu antepassado por Marrocos. Todos os esquissos feitos nessa viagem seriam utilizados na obra posterior do artista.
Numa outra viagem, o barão acompanharia o príncipe D. Fernando, feito imortalizado naquele que foi o primeiro livro em Português editado em Marrocos. Obra que Tomás gostaria de ver reeditada.
Procurando manter a tradição familiar, o pintor dividia o seu tempo entre Tânger e Lisboa. Há cerca de um ano, na sequência do lançamento, em Rabat, de um livro sobre os Colaços, da autoria do genealogista Jorge Forjaz, o rei de Marrocos enviou uma equipa de reportagem propositadamente a Portugal para falar com Tomás, o que para ele é suficiente prova da «reputação que ainda hoje goza a nossa família no reino de Marrocos».
Ficaria incompleto o relato se não voltássemos a percorrer a centena e meia de quilómetros de costa que separa Arzila de Rabat, também ela, como sói dizer, “pedra que fala Português”. Este era exclusivo território de cavalgadas e domínio dos mouros de pazes. Em Larache – em Árabe, “o pomar” – pretendeu D. João II argamassar fortaleza, em 1489, mais propriamente na ilha da Graciosa, em pleno rio Lucos, “o rio da Ponte”, como lhe chamávamos, devido à ponte romana existente no caminho de Arzila para Alcácer Quibir.
O “objectivo Graciosa”, apesar de terem sido enviadas do reino “duas frotas com gente, pedra e madeira para fazer uma vila”, não passou disso mesmo, pois, como salienta David Lopes, “o local era insalubre e o rio só era navegável até ele, uma parte do ano”. Como se não bastasse, o alcaide Mulei Xeque, violando o acordo de paz estabelecido ainda no reinado de D. Afonso V, pôs-lhe o cerco antes que a praça assumisse rosto que se visse, e, assim, o desde logo “percalço Graciosa” contribuiu para que o inimigo se inteirasse da real importância militar de Larache, que a partir daí passaria a ser fortemente povoada. As muralhas ainda existentes nas imediações do porto desta cidade – garantem os marroquinos, entre os quais os académicos – são de origem portuguesa e datam do século XVI.
Na cidade de Kenitra, a norte de Rabat, outras ruínas, as da desastrosa expedição de Mamora, demonstram o plano de D. Manuel de “cingir a costa atlântica de Marrocos de uma couraça de praças-fortes que prenderiam os movimentos do adversário e o obrigariam a render-se” – é ainda a opinião de David Lopes.
Mamora, a “nossa Póvoa”, aldeia na foz do rio Cebu (ou Mamora), actual Mehdia, foi sondada pelos portugueses, em 1507, com o objectivo de ali ser erguida fortaleza. Em 1514, seriam enviados informadores e, no seu encalço, uma armada de quatrocentas velas que transportavam oito mil homens e uma completa “vila de madeira, com baluartes e torres”, a erguer em local previamente escolhido, para que no interior dela se pudesse ir construindo, “sem perigo”, uma povoação de pedra e cal, como era habitual então fazer-se. E por tal ter sido feito a 23 de Junho, foi proposto o nome de São João de Mamora, não fosse a pronta acção de Mequinez, alcaide dos domínios vizinhos, que com um cerco apertado obrigaria à retirada dos nossos, a 10 de Agosto do mesmo ano.
Da incompleta fortaleza restam, ainda hoje, alguns vestígios. Segundo o cronista Damião de Góis, perdeu-se na refrega “metade das velas e metade dos homens”, o que constitui o maior desaire militar do reinado de “o Venturoso”. Entre outras façanhas, D. Manuel queria transformar em fortaleza também a feitoria de Anafé – aquela que seria conhecida mais tarde como Casa Branca e, posteriormente, a espanholizada, a “bogartizada” Casablanca, vedeta de cinema e inspiradora de nome de bar em tudo quanto é sítio. Está para ser inventada nação onde não exista, pelo menos, um bar com o nome da capital económica de Marrocos.
Joaquim Magalhães de Castro