Arzila branca
Para os capitães das praças-fortes portuguesas no Magrebe eram bem mais lucrativas as situações de guerra do que os momentos de paz. Contudo, apesar do contínuo estado de sítio, as comunicações com o exterior não estavam inteiramente cortadas. Nos interregnos das incursões armadas de parte a parte arribavam as cáfilas de mercadores de Fez e Alcácer Quibir, e trocavam-se visitas e cumprimentos entre os alcaides combatentes e o capitão da fortaleza. Assim se passava em Arzila, conquistada em 1471, despejada (isto é, abandonada pelos habitantes), uma primeira vez, em 1577, e, definitivamente, governavam já os Filipes de Ausburgo, em 1589.
A minha partida de Tânger rumo a Arzila (Asilah, em Árabe) seria, sem surpresa, outra aventura no que concerne à compra do bilhete, avaliado em dez dirhams, mas que me seria vendido a quinze, indo cinco directamente para o bolso do intermediário feito na altura. Enfim, um ver-se-te-avias na arte da intrujice. Havia ainda que agradar à autoridade, ciente do bem oleado esquema de extorsão, devendo o aldrabão, para isso, ajudar a custear a nova casa do graduado da polícia, de quem se esperava algum favor ou perdão por infracção outrora cometida.
Do panorama exterior, havia a registar, olhando para o lado esquerdo, povoações desinteressantes e campos de cultivo semeados com sacos de plástico de cor preta, tal era a poluição. Se prestasse atenção ao sentido oposto, tudo se resumia a uma orla costeira repleta de praias desertas. Soube mais tarde, tal como receava, que para essa sucessão de areais estavam projectados grandes investimentos turísticos, iniciativa dos abonados árabes do Golfo.
A auto-estrada rasga a paisagem até ao Rio Doce das crónicas quatrocentistas, hoje um oued menor, o Maharfar, de águas azul-turquesa, atravessado pela Ponte Mohammed V. Logo a seguir surge Arzila. Foi breve a caminhada até à cidade amuralhada.
«– Pode andar à vontade, nada há a temer», assegurara o meu companheiro de viagem: um pescador que durante largos anos fizera faina em Lagos. Porém, logo à entrada da cidade, vários proponentes tentaram impedir-me de encontrar lugar barato onde ficar, querendo impingir-me, à força toda, alojamento pago em euros. Ou muito me enganava, ou havia ali turistas com fartura. E não eram turistas de dias ou semanas, antes compradores das casas que os arzilenses disponibilizam de boa vontade, sedentos de dinheiro vivo. Depressa me apercebi de que, no interior da almedina, onde desejava ficar, escasseavam pensões a preços razoáveis, e todas elas estavam lotadas. Vi-me, por isso, obrigado a alojar-me na casa de uma família sem grandes condições para receber visitantes, atropelando o mote que há muito adoptara: família há só uma, a minha e mais nenhuma.
A almedina de Arzila visita-se numa tarde. E entranha-se sem nunca se estranhar. No casario predominava o branco, pontuado pelo azul das ombreiras. Nas paredes comuns ficariam, alguns meses ainda, as pinturas da mais recente edição do Festival Internacional de Pinturas Murais e Arte ao Ar Livre, pela qual é conhecida esta cidade.
Nas muralhas e na designada Porta da Terra, ou Porta da Vila, que contrastam com a alvura das casas e o azul do mar, descobri alguns brasões portugueses. Ou melhor, reminiscência de brasões, pois foram de tal forma escavacados que só com muita imaginação se conseguia identificar o que outrora estivera ali gravado. Havia ainda uma segunda porta de origem portuguesa, a designada Porta da Ribeira ou Porta do Mar.
De entre os diversos bastiões da cidadela, destaque absoluto para a “couraça”, que avança sobre o mar servindo de ponto de embarque e desembarque de provisões e reforços, e, claro, para a esbelta Torre de Menagem, a mais alta e mais importante estrutura da cidade, obra de Diogo Boitaca, o arquitecto responsável pela fortificação de Arzila. Curiosamente, pese a sua imponência, a torre tinha, sobretudo, uma função cerimonial, constituindo, per se, o símbolo do poder da cidade.
Durante décadas um simples amontoado de ruínas, a Borj al-Kmara, como é conhecida entre os árabes, seria reconstruída, em finais do século XX, com fundos disponibilizados pela Fundação Calouste Gulbenkian. A placa estava lá para o comprovar. Alumiadas por janelas manuelinas esculpidas na pedra transportada de Portugal, as salas interiores estavam vazias, quando antes abrigaram peças de museu e exposições de arte. Quanto à parte superior, coberta com telhado de duas águas e dotada de guaritas em cada um dos quatro cantos, o melhor é nem falar. Utilizavam-na as centenas de pombas que alegremente ali deixavam os seus dejectos.
Ao notar o meu interesse por aquela espécie de museu vazio, a senhora da limpeza fez-se aos dirhams, hábito muito local, garantindo-me que mantinha o espaço sempre limpo. Sinceramente, não via como.
Um dos vários interlocutores com quem entabulei conversa durante a minha estada em Arzila, ao inteirar-se dos meus propósitos, chamou-me a atenção para “o túmulo de Zials”, a poucos quilómetros da cidade. Assegurava que ali se encontrava sepultado um monarca português, ressalvando, desde logo, que não se tratava de D. Sebastião, pois, esse, os marroquinos conhecem bem. Sendo assim, só podia referir-se ao túmulo de Duarte de Meneses, capitão de Alcácer Ceguer, morto na serra do Benacofu, às mãos dos temerosos angeras, tentando proteger D. Afonso V.
Joaquim Magalhães de Castro