Costa da Memória

Os mundos da almedina

Quem passeasse pelas ruas de Chefchouen, de nada de anormal se aperceberia, tão-só a transformação de uma parte considerável da cidade em montra para turistas, com os constantes apelos dos comerciantes para beber chá, apreciar os tapetes ou visitar as denominadas “cooperativas artesanais”. Era bastante óbvio que os habitantes estavam cansados de ver turistas a deambular com a máquina fotográfica a tiracolo, mas nem por isso deixavam de ser atenciosos e simpáticos. De vez em quando, avistava-se o ocasional estrangeiro saindo de uma casa que notoriamente lhe pertencia, ou apresentando-se como dono de uma das dezenas de pensões ali existentes. Muitos deles eram espanhóis e franceses, mas também os havia italianos, alemães e ingleses… E portugueses?

«– Só conheço um. Comprou um terreno na montanha para montar uma pensão destinada a quem faz caminhadas no Rife», afirmou Abij.

A maioria dos portugueses que demandavam Chefchouen pertencia a uma faixa etária jovem, atraída pelo perfume do “kif” (pólen da cannabis), ali fumado abertamente. «– Se quiser ver como se faz, pode fotografar, mas deve pagar», fizera questão de me informar Abij, revelando, por fim, o seu principal intuito. Mas também havia grupos de excursionistas portugueses da terceira idade, originários da província. Em dois dias de estada cruzei-me com dois deles. Da passagem dos primeiros, ficaram frases como “tudo fixe”, “fixe radical”, “batatas fritas”, que os berberes depressa integraram no seu vocabulário de empata turistas, havendo quem se saísse com o patético pregão publicitário da TV Cabo: “Há coisas fantásticas não há?”, certamente resultado dos canais televisivos portugueses ali sintonizados sem necessidade de recorrer à antena parabólica. À corriqueira pergunta “de onde és?”, os locais tinham acrescentado “Lisboa? Porto? Cascais?”, para concluírem, feitas as apresentações e seladas as amizades eternas, que “o português é irmão de berbere”.

Movido pela força das circunstâncias, pois, para todos os efeitos, acompanhava Isabel e Hassan, embarquei no rodopio de uma suposta amizade, aceitando as sucessivas chávenas de chá na pequena loja do Ali, amigo de Hassan, berbere como ele, rodeado por peças de artesanato de couro, tapetes, minerais, fósseis e uma vistosa sanita feita de uma espécie de mármore com fósseis embutidos. Ali insistiu para que ficasse alojado em sua casa, pois, como dizia, «amigo de Isabel meu amigo é». Pois, pois. Era óbvio que queria algo. Depois logo veria qual a moeda de troca a desembolsar, mal Ali e companheiros de comércio descobrissem que não viera propriamente para fazer compras.

No tempo dos espanhóis havia em Chefchouen “bodegas” por todo o lado, mas agora o vinho e demais bebidas alcoólicas eram servidos às escondidas. Um dos latíbulos parecia ser a casa do Ali, que se viria a revelar, tal como eu desconfiara, um interesseiro de primeira apanha. Cobrou vinte euros por cabeça – «preço especial para amigos», como dizia – por um lugar num sofá, ou no chão, em cima de umas mantas. Enfim, o verdadeiro acampamento. Pobre da Isabel, que acabaria por pagar essa e outras “hospitalidades”, enquanto os compinchas de Hassan se entretinham a embebedar-se, recordando, um deles, uma façanha recente.

«– Ontem, na companhia do chefe da polícia, bebemos sessenta cervejas cada um».

Muito credível a gabarolice. Prova disso, o ar que se lhe deu à garrafa de Vinho do Porto destinada à família do Hassan, cortesia da Isabel.

No dia seguinte, arranjei uma desculpa para reservar quarto na pequena Pensão Arazhem, não muito longe da casa de Ali, onde voltei a ter a minha tão querida independência (isto é, um quarto e uma porta para trancar), um belo terraço com estendal de roupa a secar, um cágado de estimação e a amizade de um francês rastafari que repartia o seu tempo entre Marselha e Bamako, no Mali, onde fazia documentários. Ficou o convite para uma visita, «um dia destes».

Era óbvio que a hospitalidade genuína há muito deixara de se aplicar por aquelas bandas. Mesmo assim, insisti em perder-me nos meandros daquela cidade de esplanadas e cafés na praça e vendedores ambulantes de fruta (sem dúvida biológica) e de umas deliciosas tacinhas de grão-de-bico com cominhos, ou então de caracóis que se comem com ajuda de alfinetes de bebé, ambos a um “dirham” cada, pois, nestas coisas da viagem, adoro provar os petiscos feitos na rua, resistindo com toda a estoicidade aos apelos agressivos dos vendedores de tapetes e às suas conversas de venha-lá-beber-um-chá, num mundo de inspiração muçulmana, ali encarnado em, pelo menos, uma vintena de mesquitas e santuários, sendo o templo principal de cor verde. Vejam lá a ironia: uma mesquita verde numa cidade predominantemente azul.

À semelhança das urbes islâmicas, também em Chefchouen existe uma clara diferença entre o mundo da almedina e o mundo extra-almedina, do qual faz parte a Ponte de Ler Wara, a dois quilómetros do centro, alegadamente de origem portuguesa. Isso me garantiu o velho Ibrahim, proprietário da Pensão Arazhem.

Joaquim Magalhães de Castro

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