Sofrer e morrer sem o mundo saber
São muitos os conflitos armados em África ignorados pelos grandes meios de comunicação ocidentais, pois trata-se de um fenómeno que não lhes diz respeito: é dor de outra gente que não reconhecem como próxima e muito menos fraterna. Neste artigo, queremos dar aos nossos leitores uma breve panorâmica desta situação trágica na humanidade, e relevar aqueles e aquelas que, entre os gritos de dor e de morte, andam por lá, quais “verónicas” e “cireneus” na via dolorosa de hoje, também ignorados, mas autênticos heróis do silêncio e da fraternidade.
Vários são os países africanos que sofrem a violência da guerra civil ou de grupos armados que espalham o terror e a morte. Os conflitos em África são basicamente motivados por disputas territoriais; golpes de Estados, que geram crises políticas; rivalidades tribais, motivadas por questões étnicas ou religiosas; disputas por água e recursos minerais; e imersão do povo na miséria. Essas motivações são provenientes do processo de colonização do continente, da Guerra Fria, da intervenção de terceiros Estados e de eleições conturbadas.
Os principais conflitos em África acontecem nos seguintes países: República Centro Africana, Mali, Burundi, Ruanda, Sudão e Sudão do Sul, Nigéria, Etiópia, Somália, República Democrática do Congo. Em todos estes países há duas linhas comuns causadoras destas tragédias: a sede do poder e do dinheiro. Sede do poder: em todos os conflitos há um ou mais grupos rebeldes que atacam o Governo instituído e eleito em eleições consideradas livres e credíveis. Só que, em muitos casos estes Governos falharam, nas promessas ao povo e, aliados, por vezes às antigas potências colonizadoras entregam as riquezas naturais a grandes investidores estrangeiros, ficando o país a ser explorado e as populações, em volta, em graves privações. Também, misturadas com estes motivos de guerra há, em quase todos eles, a vertente religiosa radical islâmica que deseja fazer de África o grande continente islâmico do futuro. Por isso, em todos os conflitos armados nos países acima nomeados, é forte a presença de grupos armados ligados ainda que ideológica e sentimentalmente à Al-Qaida e, nas regiões que controlam, a impor a sharia e a perseguir cruelmente, como é o caso do Grupo Boko Haram, na Nigéria e não só, os cristãos de todas as denominações: católicos, protestantes, evangélicos, etc.
Infelizmente, em todos estes conflitos, há pontos comuns, tais como a tensão religiosa e a divisão do território, a crise humanitária e a tentativa de resposta de ajuda da ONU e de outra organizações internacionais, incluindo apoio militar, como é o caso de Portugal na República Centro Africana ou da França no Mali e noutros países, e também a presença dos Estados Unidos, Alemanha, ONU e outros. A insegurança alimentar, que tem sido a causa de maior dor e morte de milhões de pessoas, sobretudo crianças, numa mortandade que o Covid silenciou mas não conseguia abrandar. Nesta ajuda alimentar internacional, releva-se a presença significativa e insubstituível das Nações Unidas através do PAM (Programa Alimentar Mundial) e de muitas ONG e da Cáritas internacional. À escalada de violência acrescenta-se um número incalculável e sempre crescente de refugiados para vários países vizinhos.
AS CRIANÇAS E A GUERRA
As crianças são um dos grupos mais afectados pelos conflitos. O que se passa, por exemplo, na República Centro Africana, onde actualmente 1,5 milhões de crianças necessitam de ajuda humanitária e quatro em cada dez crianças com menos de cinco anos sofre de malnutrição crónica, é o panorama mais ou menos geral das populações de outros países em guerra. A instabilidade e a violência separaram comunidades e famílias e hoje, três em cada cinco crianças vivem com famílias de acolhimento, a grande maioria extremamente pobres.
LUTAS ÉTNICAS E FRAUDES ELEITORAIS
Em alguns países, em especial no Ruanda, no Burundi, no Sudão do Norte e Sudão do Sul, lavram infelizmente ebulições étnicas, com, por vezes, ódio de morte e lutas fratricidas, a culminar em massacres indizíveis. Actualmente, ainda são uma das grandes causas da guerra. Devido a esta luta étnica, quem está na oposição entende que quem está no poder governa para os seus, da sua tribo e do seu povo e não para todos o povo de todo o país. Daí as eleições não são respeitadas porque fica sempre a pairar a dúvida e, por vezes, a certeza de fraude. Ainda no momento em que escrevo as eleições gerais na Somália foram adiadas após o fracasso das negociações entre as principais lideranças políticas do País. Segundo o Presidente Mohamed Abdullahi Farmajo, as tentativas de realização do pleito foram travadas. O impasse poderá conduzir a uma crise política de novas dimensões na nação do Corno de África – que já enfrenta uma violenta insurreição islâmica, uma invasão de gafanhotos, a pandemia de Covid-19 e graves carências alimentares. Centenas de cidadãos estão a ser mortos nos conflitos na região de Tigray. Ninguém sabe ao certo o número de mortos, mas, entre eles, há padres e líderes das igrejas. Lojas, escolas, igrejas e conventos foram roubados e destruídos. Milhares de pessoas fugiram das suas casas. Muitos atravessaram a fronteira para o Sudão, mas outros procuraram refúgio em áreas remotas, nas montanhas, sem água ou acesso a comida. Na região de Tigray, que faz fronteira com a Eritreia e o Sudão, cerca de 95 por cento da população é cristã e pertence à Igreja Ortodoxa Copta Etíope.
O RECURSO ÀS ARMAS
Por discórdias e fracassos como estes, explode o surgimento fácil e apoiado de armamento para conseguir pelas armas o que o voto não consegue. É um drama que não será fácil de conter num futuro próximo. Estas lutas étnicas derivam, em grande parte, do desconhecimento e da arbitrariedade das potências colonizadoras que, ao longo do período neocolonialista, dividiram África segundo os interesses dos colonizadores europeus. Foram ignoradas as realidades, rivalidades e identidades dos povos africanos, agrupando-os em tribos culturalmente diferentes. A divisão do continente ocorreu na Conferência de Berlim (1884-1885), na qual foi estipulado que os colonizadores europeus dividiriam o território de acordo com seus interesses. Ao longo do período da Primeira Guerra Mundial, noventa por cento do território africano estava sob domínio europeu. Somente após a Segunda Guerra Mundial, as colónias africanas deram início a sua independência. Segundo a mestre em Relações Internacionais Janete S. Cravino, nas últimas décadas, pelo menos vinte países de África enfrentaram ao menos uma vez uma guerra civil. Foi também constatado que esses conflitos, geralmente, acontecem nos países que importaram o modelo de construção estatal de um colonizador e fracassaram. Das catorze operações de paz da Organização da Nações Unidas, sete acontecem em África.
OS MAIS AFECTADOS NA DOR E NA MORTE
Como em todas as guerras, mas nestas, especialmente em África, os mais atingidos no sofrimento nem são os militares ou os membros dos grupos armados. Normalmente estes têm de comer e de vestir e morrem em combate. Pior situação, embora silenciosa, é a de milhões de crianças-soldado, de crianças e bebés abandonados à sua sorte e a terrível sina das mulheres. O que se está a passar em África nestes conflitos armados em relação a estes grupos frágeis é um crime hediondo que brada aos céus. Acontece de tudo, massacre em massa de civis nas aldeias, sem olhar a quem, rapto e abuso de crianças, venda de crianças escravos e escravas sexuais, “canga” militar forçada de crianças dos nove aos doze anos, violação de meninas e mulheres acabando por ser mortas cruelmente e esventradas. Por exemplo, no Sudão do Sul o estupro faz parte da rotina de milhares de mulheres que vivem no meio de uma guerra civil. Pesquisa da ONU mostra que 72 por cento das mulheres que chegaram a quatro campos de protecção já haviam sido violentadas. A maioria foi vítima de polícias e soldados.
OS MISSIONÁRIOS NO MEIO DISTO TUDO
Em todos estes países e conflitos está a Igreja Católica, vítima de ataques sangrentos, dor e morte provocados pela fúria de radicais islâmicos; mas também estão os missionários, os bispos, o clero local e os fiéis a fazer travão heroico e silencioso ao ódio, ao poder do dinheiro e das armas. Tem sido, no meio do caos, uma chama de esperança de paz e de acompanhamento do povo sofredor. Com ele e no meio dele, sofre a insegurança reinante e paga um alto preço por estes conflitos, cujos efeitos continuam a fazer-se sentir também nas estruturas e na organização das suas comunidades eclesiais: saques, vandalismo, ataques contra agentes pastorais e restrições ao trabalho da pastoral. É uma Igreja no caminho do calvário levando a cruz do povo quais Verónica e Cireneu, suportando e vivendo, corajosamente, a experiência da fragilidade e pobreza evangélicas. Os extremistas também usaram a incerteza da pandemia de Covid-19 para afirmar mais controlo em algumas partes. Os cristãos são os mais visados por estes grupos, com uma tendência persecutória a aumentar cada vez mais. Conta uma cristã do Mali: «Mais de uma vez, a minha família enviou jihadistas à minha casa para nos matar, ou pelo menos para nos intimidar. Os planos deles nunca funcionaram. Mas um dia, enquanto o meu marido estava de viagem de negócios, ele foi morto a tiro. Foi morto pela fé e por se ter casado com uma ex-muçulmana. Os seus colegas é que me deram a terrível notícia. Até hoje eu não tenho ideia do que aconteceu ao seu corpo».
Um relato entre milhares. Tantas têm sido as vítimas cristãs destes conflitos. A presença da Igreja e dos Missionários concretiza-se no Ensino, na Saúde (hospitais, maternidades, postos de atendimento e de enfermagem), na alimentação, com forte presença da Cáritas internacional, e no trabalho organizado e comunitário das comunidades cristãs, e na intervenção directa no diálogo com as forças beligerantes. Apesar de em muitos destes países a Igreja ser muito minoritária consegue fazer milagre da multiplicação do pão, do conforto e da proximidade com todos. Por exemplo, na Etiópia os católicos não passam de 0,7 por cento da população, mas a Igreja Católica administra incríveis noventa por cento das obras sociais. Isso significa ser uma ajuda insubstituível às populações pobres atingidas por problemas cíclicos e muito graves. A obra social da Igreja diz respeito, em primeiro lugar, ao campo sanitário e ao da instrução, mas também ao da construção de obras (poços, aquedutos) para a exploração da água. Na Nigéria, a Igreja Católica é responsável por mil 728 paróquias, atendidas por dois mil 594 padres diocesanos e 640 padres religiosos. Havia também 428 irmãos e duas mil 968 irmãs dedicadas aos esforços humanitários e à operação das duas mil 870 escolas primárias e 244 secundárias do País. Nesse período, além dos contínuos conflitos religiosos nos Estados do Norte, a atenção da Igreja foi direccionada para ocrescente número de mortos em decorrência da propagação da SIDA. Tem estado igualmente muito activa na luta contra o Covid-19.
Um aspecto importante é a Igreja ter a coragem de denunciar os crimes e apelar aos Governos para proteger os direitos de todos. Por isso, um resto da comunidade internacional (porque, na realidade, não existe comunidade internacional inquieta com as situações conflituosas em África!) interroga-se sobre o que seria deste povo sofredor se não fosse a presença activa e silenciosa (silenciada?) da Igreja Católica e dos seus missionários, entre os quais, alguns portugueses, eles e elas, metidos neste turbilhão. Seria um povo a morrer, sem antes ter e voz e vez para, ao menos, gritar.
ARTUR DE MATOS
In Boa Nova – atualidade missionária