Classe Média da Santidade

O mundo das pedras vulcânicas

A recente exortação apostólica do Papa Francisco, dedicada à santidade, evoca o curioso romance de Joseph Malègue, intitulado “Pierres noires: Les Classes moyennes du Salut” (em Português, significa “Pedras Negras: as Classes Médias da Salvação”).

As pedras negras são as pedras vulcânicas que marcam a paisagem e as povoações do Auvergne e do Cantal, regiões da França onde a acção decorre. O tema do livro é a decadência de uma sociedade fechada, um mundo tradicionalista em que a referência ao Cristianismo justificava rendas e privilégios de épocas passadas. Para uma certa classe social, a queda da Monarquia e o advento da República tinham coincidido com a perda dessa estabilidade económica e social, de modo que o Cristianismo e a política lhes pareciam aliados. Pairava nesses ambientes uma nostalgia, simultaneamente espiritual e mundana, porque, ao mesmo tempo que a sociedade se descristianizava, perdiam-se os benefícios de outrora.

As páginas de Malègue descrevem, com pormenor e elegância literária, o olhar sensual sobre a beleza feminina, as divisões sociais implacáveis, as fortunas destruídas, os casamentos fracassados, a angústia e mesmo o suicídio dos católicos das famílias com tradição. Na verdade, não eram bem católicos, eram apenas gente razoável, que estaria disposta a uma certa decência, se isso lhes garantisse a felicidade familiar e a prosperidade material. O problema é que a vida ia destruindo as diferenças sociais que suportavam os seus rendimentos e, perdido o conforto, decaía a fé. Num primeiro momento, suspiravam pelo passado, pelo regresso da Monarquia, por uma economia assente em heranças inesgotáveis. Com o desfazer do sonho, traíam a família, abandonavam a Igreja e, nos casos extremos, punham fim à vida. Este é o drama da “classe média da salvação”. Não pediam muito, não queriam ser santos, bastava-lhes uma vida fácil e conseguir escapar do Inferno.

O Papa Francisco pegou na expressão de Malègue e deu-lhe um sentido completamente novo. Trocou “salvação” por “santidade” e propô-la como ideal para toda a Igreja. Deus “quer-nos santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa” (nº 1).

Em que sentido, então, o Papa fala de “classe média”?

“Deixemo-nos estimular pelos sinais de santidade que o Senhor nos apresenta através dos membros mais humildes deste povo. (…) Pensemos que é através de muitos deles que se constrói a verdadeira história (…). Certamente, os eventos decisivos da história do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada se diz nos livros de história, (…) almas, a quem devemos agradecer os acontecimentos decisivos da nossa vida pessoal, que só conheceremos no dia em que tudo o que está oculto for revelado” (nº 8).

Trata-se de uma “classe média” porque a santidade verdadeira – maravilhosa aos olhos de Deus – não tem de ser espalhafatosa. “Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. (…) Esta é muitas vezes a santidade ‘ao pé da porta’, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou, por outras palavras, da ‘classe média da santidade’” (nº 7).

Paradoxalmente, os personagens de Malègue, os cristãos das famílias tradicionais em amarga crise de fé, os cristãos que gostariam de se salvar a baixo preço, não são os heróis de Francisco. Os verdadeiros heróis são o povo anónimo, que vive, no meio das dificuldades, a alegria das bem-aventuranças e, ainda que o mundo os despreze e considere irrelevantes, são imensamente felizes e fazem a alegria de Deus. As primeiras palavras da exortação apostólica ecoam ao longo de todo o texto com este contraponto paradoxal: “Alegrai-vos e exultai!”, a bênção de Jesus a todos os que seguem as bem-aventuranças.

“Os profetas anunciavam o tempo de Jesus, que estamos a viver, como uma revelação da alegria: ‘Exultai de alegria!’ (…), ‘Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações ó montes!’ (…) ‘Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém!’ (…) E não esqueçamos Neemias: ‘não entristeçais, porque a alegria do Senhor é que é a vossa força’” (nº 123).

Se me é permitido resumir numa palavra a exortação do Papa, eu diria: “Deus não Se deixa vencer em generosidade”.

José Maria C.S. André 

Professor no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

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