Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXVI

A Teocracia Papal I

Neste ambiente de irrupção de heresias, movimentos sociais e desvios doutrinários, por toda a Europa Ocidental, nas cidades que despontavam e no comércio que se desenvolvia em lucros e multiplicava em rotas e centros políticos, nesta atmosfera de reivindicação do Evangelho, de afirmação da Pobreza como forma de salvação e perfeição, como reagia a Igreja? E os Papas, a hierarquia eclesiástica, dito de outro modo? Lutavam apoiando-se na afirmação do seu poder, do manto branco de igrejas que cobria toda a Europa. A Cristandade atingia a sua plenitude, emoldurada pela teocracia, que a todos se impunha e sobre todos imperava. Mas nem todos aceitavam esta Igreja, ou melhor, esta teocracia, Papal acrescente-se.

Inocêncio III (1198-1216) foi, inquestionavelmente, o Papa dos Papas da Idade Média. Foi o mais poderoso, o reflexo mais evidente do zénite a que podia chegar o máximo poder eclesiástico no seu tempo. Mas também incarnou as contradições que daí advinham. Embora as consequências delas sejam mais evidentes do que as próprias, essas contradições tornam-se uma marca d’água da Cristandade medieval. Um Papa «é menos que Deus, mas mais que homem», afirmou Inocêncio, na verdadeira assunção do seu poder e primazia sobre todos. O mesmo Papa que aprovaria em 1209 uma fraternidade fundada por um pobre desgrenhado, de burel vestido, rasgado e pobre, mas simples, humilde e pleno de intuição: Francisco, de Assis. O pobre radical que inspirou Inocêncio e o fez descer do seu trono para o saudar. Ambos perseguiam o mesmo objectivo, de salvação, mas por meios e caminhos diferentes. Mas ali os dois modos tocaram-se, os dois mundos da Cristandade medieval, a hierarquia, a instituição, por um lado, e a intuição, a humildade por outro.

Conta até uma lenda que o Papa, consternado, preocupado, com a decadência moral da Igreja, tivera um sonho em que um jovem penitente salvava a Igreja em perigo, segurando-a pelos seus próprios ombros. Inocêncio reconhecera em Francisco esse jovem, pobre e mendigo, quando fora a Roma suplicar-lhe a aprovação da sua fraternidade, que se tornaria depois numa ordem, a dos Frades Menores.

A Igreja desde o século XI que implementara o primado jurisdicional sobre as instituições, definindo um conjunto de capacidades para controlo do aparelho governamental da instituição. Aprimorou por isso os instrumentos que tinha para o efeito, desenvolvendo a fiscalidade pontifícia de forma a dotar a Igreja de recursos estáveis e capazes para atingir a prossecução até dos objectivos mais ambiciosos ou caros. Claro, os movimentos pauperísticos tinham aqui um alvo para atacar a instituição eclesiástica. É desta época que surge o Óbolo de São Pedro, dinheiro que se recolhia entre todos os fiéis e que se enviava para Roma, além de taxas e tributos sobre igrejas, mosteiros, conventos e colegiadas, ou os direitos de visitação e a concessão do pálio aos novos arcebispos, que acarretava mais impostos.

 

A Igreja, verdadeiro poder

A sistematização e ampliação do Direito Canónico foi outro dos mecanismos desenvolvidos pela Igreja, através de organismos judiciais adequados, para a implantação do seu poder. Mais fé, menos leis e menos impostos, já gritavam os hereges, o povo, os marginalizados da roda da fortuna. Que acusavam de rolar só para o poder, o da Igreja por exemplo. O desenvolvimento do Direito Canónico possibilitou ainda mais a aplicação dos poderes judiciais da Santa Sé. E quando pensarmos que qualquer cristão poderia apelar para Roma, que se sobrepunha ao Direito Civil, podemos aferir a crescente afirmação da Igreja. Finanças, leis: dois vectores fundamentais na afirmação da Cristandade centrada em Roma.

A dirigir todo este aparelho estavam os Papas. Com competências cada vez mais exclusivas e abrangentes. Canonizar santos, nomear prelados, convocar e dirigir concílios, absolver pecados graves. Tudo concorria no sentido da centralização pontifícia, na figura cimeira e absoluta do Papa. Estávamos perante uma verdadeira teocracia papal, que atingiu o seu auge com Inocêncio III. Que era, aliás, um canonista de formação… A plenitude da potestade papal, estribada na sua autoridade espiritual superior, era a base da teocracia. Mas a autoridade era já temporal cada vez mais, graças ao Direito Canónico, aos impostos, à reserva de intervenção pontifícia em assuntos relacionados com as mais altas esferas do poder laico. Nada escapava a Roma, sede desta teocracia que governava a Cristandade.

Também destes tempos vem a auto-titulação papal de Vigário de Cristo, como seu mandatário terreno em assuntos eclesiásticos e espirituais. E não só… os assuntos espirituais com consequências políticas era da sua órbita de jurisdicção, como os temporais com efeitos espirituais o eram de igual modo. Recorde-se aqui o caso de João Sem Terra, soberano de Inglaterra (1199-1216), sucessor de Ricardo Coração de Leão. João agiu de forma despótica em relação à Igreja, sem a considerar na sua governação. Inocêncio III não se fez de rogado quando entendeu puni-lo: com a excomunhão, em 1209. Sem mais! Destituiu-o do trono, também. João, enfim, submeteu-se, retractando-se, ao Papa. Declarou, para tal, a Inglaterra e a Irlanda como feudos da Santa Sé.

A sociedade, o povo, todos enfim, eram a Cristandade a partir do século XII. Guiados pela autoridade suprema do Papa, refira-se. Mesmo com a distinção clara dos poderes, as duas espadas (espiritual e temporal) assumida pelo pontificado, os Vigários de Cristo na prática fundiam as duas concepções, todas as suas actividades e facetas, que no objectivo final ou nos resultados, estavam sempre subordinados à Igreja. Ou seja, no fim quem imperava era a Igreja. É líquido pois pensar que tal não foi pacífico. A contestação era grande, muitas heresias e movimentos elegem essa afirmação teocrática como o alvo maior das suas críticas, a razão da sua luta.

O poder absoluto do Papa teve a oposição também de príncipes, alemães principalmente, ou de outros movimentos políticos como a “república de Roma” liderada por Arnaldo de Bréscia (1144-55), que sublevou a população romana contra o Papa, que esteve ausente da sua sede vaticana durante esse tempo. Fraquezas temporais do Papa podem-se antever também neste decénio turbulento em Roma, apenas resolvido com a intervenção de Frederico Barba-Roxa e suas hostes, a favor do Pontífice. Arnaldo acusava o Papa de avidez de domínio temporal e de riquezas e, mais grave, de mundanização da Cúria Romana. A perigosa tentativa de domínio papal sobre o temporal fora posta a nu, encoberta que estava pela hierocrática concepção da unidade dos cristãos liderada pelo Papa. Que funcionava muitas vezes, diga-se, mas as tentações seculares e de poder eram ponderosas. Daí a crítica, a reacção, as turbas em sublevação, as doutrinas radicais, o fermento da heresia…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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