Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXIX

John Wycliffe, herético ou reformador?

John Wycliffe (1328-1384) foi um teólogo, professor e reformador religioso do século XIV. É por muitos considerado como o precursor de ulteriores reformadores como Lutero e Calvino, no século XVI. Wycliffe notabilizou-se por ter proposto uma reforma religiosa, na Inglaterra, no século XIV, a qual só se iria concretizar cerca de dois séculos depois, ainda que noutros moldes. Wycliffe fundou o movimento conhecido como os Lolardos, ou Wycliffismo, sendo também tido por muitos autores como o inspirador espiritual dos hussitas, como depois dos protestantes. Foi ainda uma das primeiras pessoas a realizar uma tradução da Bíblia latina, a Vulgata, directamente para uma língua vernácula, no caso o Inglês, em 1382.

John Wycliffe nasceu em Yorkshire, na Inglaterra, provavelmente no ano de 1328. Em 1346 foi estudar Teologia, Filosofia e Legislação Canónica em Oxford. Com 26 anos tornou-se mestre do Colégio de Balliol, em Oxford. Em 1361, com 33 anos, foi ordenado sacerdote pela Igreja, passando a exercer a função de vigário paroquial em Phillingham. Voltou para Oxford, onde concluiria o bacharelato em Teologia, em 1365, terminando o doutoramento em 1372.

Wycliffe foi então convidado pelo Parlamento para liderar as discussões sobre a colecta de impostos e taxas para o papado, pois gozava já de grande fama de teólogo e canonista. Nessa época, o papado estava instalado, recorde-se, em Avinhão, na França. Desde 1337 desenrolava-se uma guerra entre a Inglaterra e a França, que viria a arrastar-se até ao século XV, a designada “Guerra dos Cem Anos”. Perante as pesadas cargas tributárias papais, o parlamento inglês procurava formas de impedir a cobrança dos impostos eclesiásticos, pois as taxas recolhidas na Inglaterra, e não só, acabavam a enriquecer nada mais nada menos do que a França, que controlava e dominava o papado, sito em Avinhão. Esta sede papal num enclave cercado pelo reino francês não foi mais do que uma pretensão bem conseguida de Paris equilibrar as suas finanças e custear a guerra que deveria servir para expulsar o domínio inglês do seu território. O parlamento de Londres, com base em argumentação fornecida por Wycliffe, declarou que a submissão da Inglaterra a uma autoridade estranha era ilegal, pois havia sido decidida sem anuência da nação. Até ao fim do reinado de Eduardo III, em 1377, a Inglaterra era o único Estado que assumia, contra a Igreja, uma oposição legal e oficializada.

 

Contra Avinhão

Wycliffe colocou-se pois ao lado de Eduardo III e, com uma base teórica na política real, escreveu “Uma Definição de Propriedade”, obra na qual defendia o direito do Estado de legislar sobre o problema dos impostos eclesiásticos. Com a sua argumentação acabou, porém, por ganhar a hostilidade do clero, ao qual pertencia, mas também agrado e favores do Governo inglês. Foi assim nomeado reitor de Lutterworth, em Leicestershire, em 1374, cargo que manteve até à morte.

Ainda em 1374, Wycliffe recebeu uma missão que o levou a Bruges, na Flandres (actual Bélgica), na qualidade de delegado do Governo, com a incumbência de tratar da questão papal das “provisões”, isto é, o direito tradicional do Sumo Pontífice de nomear quem quisesse para cargos eclesiásticos. Wycliffe posicionou-se contra esse intento papal, mas não conseguiu nada de prático.

Em 1376 publicou a mais importante de suas obras, “Sobre a Propriedade Privada”, onde afirmava que todos os direitos, inclusive o da propriedade, emanavam de Deus, além de que os bens terrenos do clero deveriam ser retirados da sua posse e gestão, pois achava que a Igreja deveria dedicar-se apenas aos assuntos espirituais. Pressupunha assim a necessidade de apropriação pelo Estado das terras e bens pertencentes à Igreja. Claro que os seus correligionários eclesiásticos, a maior parte, não aprovou tais ideias de Wycliffe.

Wycliffe escreveu 65 obras em Inglês e 96 em Latim. Traduziu também a Bíblia para Inglês, a fim de a tornar acessível ao povo, perante a proibição da Igreja. Por isso, acabou a atacar a hierarquia eclesiástica. Com a Igreja dividida, Clemente VII eleito pelo clero francês, em Avinhão, e Urbano VI a reconduzir a sede do papado para Roma, com o Cisma, estavam reunidas as condições para Wycliffe acusar ambos os Papas de anticristo. Nesta senda, voltar-se-ia contra todos os dogmas da Igreja, como a absolvição dos pecados, a hóstia consagrada, enfim, tudo se tornou em alvo para os ataques de Wycliffe.

Este teólogo tinha todo o apoio de John de Lancaster, tio do príncipe herdeiro Ricardo II, que tinha apenas nove anos de idade, mas à medida que Wycliffe radicalizava a sua posição, passou a ser um entrave à política exterior britânica. Lancaster pediu, deste modo, para que se silenciasse.

A Guerra dos Cem Anos e as revoltas dos camponeses trouxeram desprestígio para a Igreja inglesa, cada vez mais pobre. Wycliffe foi então condenado pelo arcebispo de Cantuária, embora não tenha perdido o cargo de reitor. Prosseguiu com seus trabalhos e no fim da vida escreveu “Trialogus”, uma súmula das suas teorias.

Wycliffe viria a falecer em Lutterworth, Inglaterra, no dia 31 de Dezembro de 1384. Em 1415 o Concílio de Constança (1414-18) condenou as suas teorias e declarou-o culpado de heresia, ordenando que os seus restos mortais fossem queimados e as cinzas atiradas para as águas do rio Swift, que banha Lutterworth.

Wycliffe tinha enorme influencia no clero, dada a sua intermediação em assuntos eclesiásticos junto do Governo. Foi contemporâneo dos embates teológicos e filosóficos nominalistas, que influenciariam grandemente o pensamento moderno, inclusive o teológico, com grande ímpeto reformista.

Wycliffe foi um dos primeiros a denunciar a corrupção no clero católico e a anunciar a tese (que depois seria amplamente defendida por Lutero) de que qualquer um que tivesse fé poderia ter a salvação eterna, sem necessariamente ter que se dedicar ao cultivo das virtudes e às boas obras. Outra das suas críticas, mais de natureza teológica, tinha como alvo a doutrina crista tradicional da transubstanciação de Cristo, no ritual eucarístico, isto é, na cerimónia eucarística do pão e do vinho.

Outro ponto importante das críticas de Wycliffe foi a defesa da “autoridade suprema” das Escrituras e da não interferência da opinião papal sobre as mesmas e sobre a tradição cristã. Esse princípio atacava a autoridade do Papa como sendo representante de Pedro, na Terra, e portador da “chave da Igreja”, o que lhe valeu severas reprimendas da Igreja. Wycliffe chegou a qualificar alguns Papas de anticristos por conta disso. Um dos seus principais tratados foi o “De veritate Sacrae Scripturae” (“Da veracidade nas Sagradas Escrituras”), publicado em 1378. Para ele, ao contrário do Papa, afirmava, as Escrituras eram infalíveis. Esta tese influenciaria tanto o Luteranismo quanto o Calvinismo e suas ramificações, mais tarde. Por isso, com Wycliffe nascia a Reforma, de certa maneira…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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