As primeiras heresias pauperísticas na Idade Média
A heresia após o ano Mil surgiu quase como uma novidade. Mas depressa se foi disseminando, na obscuridade, encapotada nos processos de reforma eclesiástica. Quase não se deu pelos seus começos, diga-se. Não foi tanto um fruto da ignorância religiosa como o foi dos esforços efectuados, em pleno século XI, para o melhoramento e para o aprofundar da fé da piedade cristã, das boas obras. É bem verdade que heresia e renovação eclesiástica andam de mão dada e são até causa e efeito uma da outra.
Estamos nos alvores do Feudalismo, ou até na sua afirmação. No cavar do fosso social entre privilegiados – nobreza, clero – e não privilegiados – o povo. Neste último desponta uma burguesia, que nasce com o renascimento das cidades e do comércio, da manufactura e da internacionalização da economia. Cidades antigas renascem ou novas surgem, negócios, novas formas de acumulação de riqueza. E novas desigualdades e diferenças. Entre os pobres surgem os excluídos, os marginalizados, por oposição a patriciados urbanos ou senhorios rurais cada vez mais opulentos e poderosos, ricos e alheios à miséria e às periferias, às caves laboriosas que nunca viam a luz ou não tinham Domingos para ir à missa. Alheios às doenças que aumentam neste quadro de exclusão e de arrabaldes, de esperança de vida ténue, sempre no limite. Sem tempo para se viver, sequer.
Por isso, emerge uma oposição crescente à ideologia eclesial, social portanto, dominante. Uma oposição a reclamar um regresso às origens, ao mundo antigo, a um Cristianismo mais puro, autêntico, despojado de riquezas e de sumptuosidades. A um maior rigor, mas também a um abraço fraterno aos excluídos da sociedade. As seitas que surgem, obscuramente, sob as reformas religiosas, recrutam os seus membros no povo mais pobre, nas ditas “classes mais baixas”. São movimentos “democráticos”, numa classificação actual, de inspiração religiosa, na sua vertente laica. Mas voltados para o Homem, para o rosto humano, pois sublinham o esforço pessoal do homem no processo de salvação.
Pauperes Christi
Os primeiros movimentos pauperísticos (Pauperes Christi), cristocêntricos, ou seja, da pobreza voluntária imitando Cristo, surgem na França, por volta do ano Mil. Duas, três décadas depois, já irradiam naquele reino, alastrando aos Países Baixos e Itália. Ou seja, onde havia riqueza, feiras, comércio, manufacturas, cidades e ofícios. Fenómenos isolados inicialmente, estavam distantes geograficamente. As relações doutrinais entre esses focos são-nos hoje desconhecidas, sabemos essencialmente que não apenas provinham das classes mais baixas como nelas tocavam de forma quase “contagiosa”.
O primeiro caso que se conhece foi relatado por Raúl (ou Rodolfo) Glaber (ou Calvo, “careca”), monge francês de Cluny. Conta-nos o cronista que um certo Leótard, camponês, por volta do ano Mil, abandonara a sua mulher, destruíra cruzes, recusou pagar o dízimo à Igreja (décima pate do que ganhava) e criticou o Antigo Testamento. Causou brado, pois impressionou o cronista, que deixou a memória dos actos de Leótard e a ideia de que era apenas o começo, ou o reflexo de uma conjuntura.
Pouco tempo depois despontaram fenómenos similares, replicados daquele, na Europa Ocidental. O Nordeste de França, terra de manufacturas de lãs, têxteis, tapetes (Arras, por exemplo) rapidamente se transformará num viveiro herético, como acontecerá noutras regiões do Império Germânico. Em Liége também há casos de heresias, mas o processo mais clamoroso terá lugar em Orleães, França, em 1022, onde se condenarão muitos heréticos, muitos deles nobres e clérigos. Em Itália nos anos 30 e 40 do século XI pululam grupos destes também, em Ravena, Verona e Veneza, pontos de contacto com o mundo bizantino, oriental, sempre mais franqueado e permissivo a movimentos heréticos. Mas há muitos grupos anónimos, refira-se, ou não relatados. Mas as heresias grassavam pela Europa, enxameando de forma rápida.
Conexões doutrinais já vimos que são difíceis de destrinçar. Mas a sua doutrina e mensagem não é fácil de fixar ou identificar. A presença de nobres e clérigos, como em Orleães, pode significar alguma doutrinação, que se encontra no carácter cristológico que inspira os movimentos. Mas essencialmente, de forma simples e fácil, distinguem um mundo invisível de outro material – este pertencendo ao demónio – recusam o casamento e os cargos civis, defendem que Jesus tinha apenas um corpo aparente, além de refutarem o baptismo com água, comunicação do Espírito Santo pelo toque das mãos, bem como negavam a presença real de Cristo na Eucaristia. Estas características revelam-se idênticas às das heresias orientais que nesta época abundavam e que iam chegando ao Ocidente por via comercial, marítima e mais tarde com as Cruzadas. Consequências do progresso, da elevada mobilidade humana e até das peregrinações. A iliteracia e escassa formação do povo tornava-o vulnerável e quase esponjoso na recepção destes preceitos, travestidos de ideias políticas anti-nobiliárquicas e de anticlericalismo primário, um “cocktail” que redundava rapidamente em heresia e daí num movimento social. Mas podem ter surgido de forma espontânea no Ocidente, sem mimetizarem ou receberem modelos do Oriente, refira-se. Embora a dualidade seja idêntica aos bogomilos, filhos do Maniqueísmo, ou seja, a existência de duas forças motrizes, o Bem e o Mal.
As heresias cristãs do Ocidente que aprecem no século XI eram a expressão de uma nova vitalidade teológica e doutrinal do povo cristão após o ano Mil, o reflexo de uma coerência moral simples e o desejo de uma religiosidade menos formal, menos clerical, menos sacramental e ritual. Muitos clamavam de facto pelo Evangelho. Mas o Evangelho da Pobreza, de rosto humano. Não necessitavam, defendem vários autores, de inspirações bogomilas bizantinas, bastava-lhes a realidade social, a pobreza e a exclusão. E o sentimento de desenquadramento na realidade eclesial, cada vez mais “feudal” e clerical. Senão, se virmos por outra perspectiva, outro ângulo, não faltaram movimentos clericais também, na época, a pugnarem por reformas e por uma Igreja mais humana, simples e despojada. Por um regresso às origens, aliás uma bandeira comum a todas as reformas. Recorde-se aqui a fundação de novas ordens religiosas no Ocidente nos séculos XI e XII, a começar em Cister (1098), uma renovação do monaquismo beneditino de tradição de Cluny, ou na Cartuxa, Premontré, etc. Mas atenção, estas heresias não são “nada”: o pior estava para vir. Bem pior, diga-se. Nada será igual e muitos pereceram em nome de reformas e pureza da Igreja. Como veremos na próxima semana…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa