O Febronianismo
O Febronianismo foi uma doutrina que gerou um grande movimento na Igreja, a partir das ideias de um cónego alemão da cidade de Trier, de seu nome Johann Nikolaus von Hontheim (1701-1790), cujo pseudónimo era Justinus Febronius. Teve este movimento um particular impacto no século XVIII. Em síntese, visava diminuir a autoridade e os direitos do Papa e aumentar os dos bispos, com o argumento de que a instituição fundada por Jesus, a Igreja, portanto, simplesmente não era monárquica. O cónego Febrónio era ainda um vigoroso apoiante da reunificação da Igreja Católica com outros credos cristãos, nomeadamente protestantes, defendendo também o nacionalismo eclesiástico, numa perspectiva próxima ao Galicanismo francês. A Igreja acabou, porém, por o condenar como cismático.
Na sua obra intitulada “Justini Febronii Juris consulti de Stata Ecclesiæ et legitima potestate Romani Pontificis Liber singularis ad reuniendos dissidentes in religione christianos compositus” (1765), Febrónio, bispo auxiliar de Trier, na actual Alemanha, define acima de tudo um sistema político eclesiástico. A sua base é o Galicanismo, que aprendeu com um canonista flamengo de seu nome van Espen, quando estudava em Lovaina. Mas Hontheim (ou Febrónio), mau grado algumas inconsistências doutrinais, avançou de forma radical em relação ao Galicanismo tradicional. A obra é uma teoria de organização eclesiástica que nega a constituição monárquica da Igreja, tendo como objectivo o facilitar a reconciliação entre os Protestantes e a Igreja, diminuindo o poder da Santa Sé.
Segundo Febrónio, o poder das chaves foi confiado por Cristo a todo o corpo da Igreja, que o exercia através dos prelados aos quais somente confia a administração desse mesmo poder. O primeiro desses prelados é o Papa, um subordinado da Igreja como todo, ao qual Febrónio reconhecia a instituição divina do primado, mas defendendo que a conexão com a sede romana não assenta apenas na autoridade de Cristo, mas também na de Pedro e a Igreja, o que faz com que esta tenha o poder de a unir a outra sede. Por isso, o poder papal deve limitar-se aos direitos essenciais inerentes ao primado que foram exercidos pela Santa Sé nos primeiros oito séculos do Cristianismo.
Unidade e nacionalismos
O Papa é, para Febrónio, o centro com o qual as igrejas individuais, nacionais, devem estar unidas. Estas deverão mantê-lo informado, para que possa exercer as suas obrigações de forma a preservar a unidade. Como fazer cumprir os cânones da Igreja, com autoridade para promulgar leis em nome desta e nomear legados para exercer a sua autoridade como primaz. O seu poder, enquanto cabeça de toda a Igreja, será mais administrativo e unificador do que jurisdicional. Assim considerava Febrónio que fora a Igreja dos oito séculos primevos, assim achava que deveria ser para sempre. Todavia, no século IX, refere o bispo alemão, o poder papal estendeu a sua autoridade para lá dos seus próprios limites. Questões antes do foro dos sínodos provinciais passaram para a alçada da Santa Sé, devido a violações da justiça, atalhava Febrónio. A condenação de heresias, confirmação de eleições episcopais, nomeação de coadjutores com direito a sucessão, mudança e destituição de bispos, criação de novas dioceses e erecção de sedes metropolitanas e primaciais, eram algumas das prerrogativas dos sínodos que a Santa Sé usurpou, segundo Febrónio.
O mesmo autor nega expressamente a infalibilidade do Papa. Este, por sua própria autoridade, não pode promulgar decisão alguma em matéria de fé de aceitação universal sem o conselho ou assentimento de todo o episcopado, tal como em matéria de disciplina não pode afectar os crentes. Este episcopalismo de Febrónio defendia também que o poder dos decretos emanados por um concílio só serem obrigatórios depois da sua aceitação pelas igrejas particulares. O Papa não poderá alterar leis publicadas por vontade própria, referia ainda, acrescentando que o “tribunal” de apelação final na Igreja é o Concílio Ecuménico e não o Papa, mesmo com a sua natureza e a autoridade do seu primado.
Aqui surge outro ponto de ruptura de Febrónio, o da subordinação do Papa ao Concílio (e a superioridade deste), para o qual aliás o Sumo Pontífice não tem autoridade exclusiva para o convocar ou sequer o direito de presidir às suas sessões, pois os decretos conciliares não necessitam também da sua ratificação. Estes concílios são considerados por Febrónio como absolutamente necessários já que nem sequer um assentimento de uma maioria de bispos a um decreto papal constitui uma decisão formal irrevogável, caso tenha sido dado individualmente e fora do Concílio.
Febrónio alude ainda à Divina Instituição do Episcopado, pela qual todos os bispos têm direitos iguais, não recebendo o seu poder jurisdicional da Santa Sé, pois entre os direitos do Papa não figura o de exercer as suas funções episcopais fora da sua diocese, ou seja, Roma! Febrónio acrescentava ainda que a tradicional reserva (prerrogativa) do Papa em conceder benefícios, anatas e a exempção das ordens religiosas estava em conflito com a primitiva lei da Igreja, pelo que deveria ser abolida. O bispo germânico tentou demonstrar, com efeito, que a lei eclesiástica do seu tempo sobre o poder papal era uma distorção da constituição original da Igreja, defendendo que esta se devia fundamentar na disciplina primitiva, pelo que deveria proceder a uma reforma completa. Como? Informando os crentes, convocando-se um concílio geral livre, que se reúnam os sínodos episcopais nacionais, que haja cooperação dos governos com os bispos e acatem os conselhos destes, que se resistam aos decretos papais, através de dispositivos existentes para o efeito (o Regium Placet, por exemplo), além de apelar à negação de obediência até a um limite legítimo, além do dever de se recorrer às autoridades seculares e não sempre às eclesiásticas.
Aqui se vislumbra claramente o objectivo dos febronianos: sob a aparente reivindicação de maior independência e autoridade para os bispos, na realidade o seu grande escopo é o de tornar as igrejas dos vários países menos dependentes da Santa Sé, facilitando-se o estabelecimento de igrejas nacionais nesses países, reduzindo os bispos, porém, a meros servos do poder civil, na realidade. O poder absoluto dos Estados revelava-se uma vez mais, como antes no Galicanismo francês. Era óbvia a oposição de Roma e de grande parte da Igreja, inclusivamente o episcopado, a esta forma de nacionalismo eclesiástico, já mais estruturada em termos canónicos e doutrinais.
Em 27 de Fevereiro de 1764 o Papa Clemente XIII condenava formalmente o livro de Febrónio e a sua doutrinação, ordenando ao episcopado alemão mesmo a supressão da obra. Dez prelados cumpririam a ordem… o que demonstra carinho por muitos sectores ao livro de Febrónio. Aliás, houve várias reedições, recensões e estudos do livro, que se tornou seminal mesmo e com grande impacto, principalmente na Europa Central. Hontheim retractou-se, mas de forma pouco sincera e insuficiente. O Febronianismo era mais um dos sinais dos tempos, na tendência nacionalista ou episcopalista alimentada pela emergência dos Estados nacionais….
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa