A Reforma Luterana – III
É a maior reforma do mundo cristão. A Reforma Luterana é de facto um momento importante, por mais fracturante ou doloroso, na história do sentimento religioso no mundo. Tudo seria diferente sem ela, como tudo ficou diferente depois. Mas nem tudo foram rosas, nem tudo foi aplicado conforme foi idealizado. A utopia chocou com a realidade, feita de homens e mulheres, de instituições, leis, Estados, poderes, economia, minorias. A bela face da moeda da Reforma tem também uma face não tão dourada. Pelo menos, na época da Reforma, no século XVI, nem tudo foi pura reforma. Mas estava aberta a Caixa de Pandora…
“Cuius regio, eius religio”. Ou seja, “a religião de um rei é a religião dos seus súbditos”. Este velho princípio da Cristandade latina bem se podia aplicar à Reforma Luterana. As igrejas luteranas, de facto, livraram-se do “jugo romano” que acusavam de oprimir o orbe cristão. O poder papal era a face visível desse jugo, na sua faceta espiritual, mas também secular, temporal. Livres de tal jugo, rapidamente, porém cairiam sob outro jugo, ou outros melhor dizendo, o dos reis e senhorios laicos, que não eram menos totalitários do que Roma… Já Maquiavel dizia antes de Lutero: “Nós, os italianos, somos mais irreligiosos e corruptos que os outros povos, porque a Igreja e os seus representantes nos deram o pior exemplo”. Mas não demoraria muito a que os cristãos reformados provassem o fel amargo dos novos exemplos, abusos e aproveitamentos dos poderes que dominavam as nações ou regiões da Reforma Protestante.
Consequências
Primeiro que tudo, não se pretende fazer aqui um discurso maniqueísta, de oposições e choques, ou de crítica negativa à Reforma. Apenas tentar-se entender o que não correu tão bem como se pensava que correria. Porque Lutero não quis uma reforma assim; esta reforma acabou por ser imposta pelo novo jugo, genericamente.
A principal consequência foi a divisão teológica entre os cristãos fiéis a Roma e os protestantes. O movimento de Lutero era essencialmente espiritual, mas acabaram muitos dos que a ele se juntaram por impor uma rebelião contra a autoridade da Igreja. Os poderes seculares substituíram-se assim a Roma na imposição do poder e controlo dos seus territórios e suas gentes. As igrejas nacionais, fragmentadas saídas da Reforma, assim propiciaram. A autoridade espiritual era importante e para muitos monarcas era um entrave na sua autoridade local. Assim, “controlando” politicamente as novas igrejas nacionais, concentravam maior poder. O poder de Roma era também um poder exterior, vinha de fora… O panorama político mudou na Europa Ocidental.
Além da ruptura com Roma, a Reforma teve forte impacto no pensamento religioso e filosófico. Lutero afirmava que a autoridade provém da Bíblia e não da Igreja ou do Papa: quebrava, pois, a tradição de uma autoridade com 1500 anos! A fractura da Reforma criou uma multitude de denominações cristãs, a primeira das quais foi o Luteranismo, surgindo desde então muitas outras até hoje, na forma de igrejas muitas delas. Contam-se trinta mil na actualidade… De seguida, surgem outras reformas importantes, como Anglicanismo e o Calvinismo, por exemplo, de que falaremos em outras edições. Advém também tristes consequências, como as perseguições entre católicos e protestantes. De parte a parte, refira-se, não apenas do lado da Inquisição, por exemplo, em Portugal ou Espanha (os luteranos e quaisquer protestantes eram perseguidos e acusados sem clemência), mas também nas nações ou regiões da Reforma, com matanças cruéis, na Suíça, por exemplo… A intolerância foi cruel, vindicativa, em várias nações, como na Inglaterra, Alemanha, onde se suprimiram mosteiros, conventos, expropriaram-se bens e assassinaram-se religiosos e fieis. Uma nova tirania, reconhece-se hoje.
Uma das consequências importantes foi a da Reforma Católica, não directa, mas de há muito encetada e preconizada, começada, mas com percalços. Um dos ramos desta reforma é a Protestante, que derivou num sentido diferente, aos olhos da Igreja. Muitas figuras involucraram-se nesse projecto de reforma, já com mais de um século, mas seria em Quinhentos que iriam levar a efeito a mesma. Muitos chamam-lhe erroneamente de Contra-Reforma, expressão que tem sentido na óptica protestante. Mas é Reforma Católica a designação a ter em conta. Voltaremos a esta questão.
A guerra foi outra consequência da Reforma, nefasta e aniquiladora, pondo em causa quaisquer hipóteses de reaproximação. A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), um século depois de Lutero, que envolveu a maioria das potências europeias, com destaque para o Sacro-Império Romano-Germânico (então dividido entre protestantes e católicos), foi o conflito nascido da Reforma que marcou a geopolítica europeia futura. Foi um conflito religioso, entre nações católicas e nações protestantes, com um lastro de mortes enorme a divisão até hoje da Cristandade europeia.
Mas há consequências positivas. A alfabetização e fomento da educação estão entre estas. Se a Bíblia é fonte de autoridade, há que a ler: logo, aprendeu-se a ler mais do que nunca. A escolarização universal no mundo protestante é um legado importante, indubitavelmente. A Igreja Católica também encetou essa escolarização, através da Companhia de Jesus (Jesuítas), a partir de meados do século XVI.
O desenvolvimento económico – que Max Weber estudou – é outra marca do Protestantismo. Ou seja, há uma relação entre ambos. Maior capacidade e investimento no trabalho, formação, técnica e menos pecado na criação de dinheiro e riqueza da parte dos protestantes, segundo Weber e alguns teóricos, produz desenvolvimento. E por aí se fundou o capitalismo moderno. Hoje em dia discute-se esta teoria e é mesmo posta em causa, ou seja, não existem comprovados efeitos do Protestantismo sobre o crescimento económico no século XVI. Há uma ética do trabalho sim, diferente, mas que por si só não explica tudo.
Outra consequência problemática foi a migração judaica para a Europa de Leste. Lutero errou na questão judaica, com efeito, pois acreditava que os judeus o apoiariam e até se converteriam ao Cristianismo, “luterano”, claro. Suportou a excomunhão, sacudiu a Igreja e até se levantou contra o Imperador (Germânico), empresas gigantescas que o fizeram acreditar na conversão dos judeus. Estes, todavia, não chegaram a refutar ou contestar: pura e simplesmente ignoraram-no. Não lhes interessava a conversão nem as lutas religiosas. Além disso, os Anabaptistas, protestantes mais radicais, acusavam Lutero de não ser reformador, além de não serem muito favoráveis aos judeus. Estes sofreram também com as guerras, preferindo continuar a viver em regiões maioritariamente católicas ou ortodoxas: por isso atente-se na forte presença judaica na Polónia, Lituânia, Rússia ou Ucrânia, por exemplo, com parte dela oriunda da Alemanha protestante.
As questões artísticas e a iconoclastia foram outras marcas da Reforma Protestante, a que se podem juntar a divisão da Europa, de forma irreversível, entre Norte e Sul, embora a Igreja Católica tenha recuperado em muitas regiões de “fronteira”. Por outro lado, temos a divisão da Reforma em milhares de igrejas e grupos. A unidade não mais seria a mesma…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa