A Questão das Investiduras
Desde o século XI pairava no ar a ameaça de dissolução da Igreja. Muitos acreditavam neste desfecho. A mentalidade feudal dominava a Cristandade. E minava a Igreja. Esta, ou se livrava da tutela de reis e senhores feudais ou desmoronar-se-ia. Reis, senhores, poderes laicos enfim, quase tudo decidiam em matéria de sagrado. Das funções e nomeações episcopais, às igrejas, altares, ao culto e calendário litúrgico, tudo era decidido pelos poderes laicos. A Igreja, os clérigos, eram cada vez mais um instrumento do poder laico. Os reformadores clamavam pela separação dos poderes temporal (senhores) e espiritual (Igreja). De pôr um fim à submissão da Igreja, de pugnar pela sua liberdade.
Povo, monges, eremitas, alguns clérigos, exigiam reforma. Pelo menos, apontavam para uma dignificação da vida moral do clero, uma melhor preparação e uma melhoria na vida pastoral. A Igreja estava na mãos dos senhores, do temporal, agia a preceito destes. A questão das investiduras, ou querela, era a causa maior de toda esta degradação. Ou a corrupção e imoralidade em torno destas. Investiduras de bispos e prelados, em que estes eram investidos dos seus cargos ou dignidades eclesiásticos. A sua nomeação, antes, era também uma corruptela, na origem desta situação moral da Igreja.
As dificuldades e confrontos eram cada vez mais intensos na primeira metade do século XI. Apesar de tudo, entre 1049 e 1085, os Papas afirmam a sua independência e lutam contra o domínio temporal. Os monges beneditinos de Cluny, a maior ordem monástica então, além de muitos crentes que desejavam uma purificação da Igreja, são os pilares dos Papas nesse desiderato. Difícil, controverso, envolto em lutas, dificuldades. Mas era urgente a reafirmação da primazia do Papa no plano espiritual e da sua autoridade entre os cristãos. Senão, corria-se o risco de dissolução, de um pulular de heresias e desmandos, querelas e dissidências.
Leão IX (1049-1054) foi o primeiro Papa a afirmar a autoridade dos Papas, apoiando-se nos reformadores alemães e nos monges de Cluny, insistindo na eleição canónica dos Papas, reorganizando a Cúria Romana de acordo com o modelo imperial e fomentando a prática das visitas de legados pontifícios a outras Igrejas, de forma a reformá-las e impor a autoridade de Roma. O modelo deste Papa e dos teólogos que o aconselhavam era a criação de uma Igreja como um reino uno, sob a monarquia papal, da qual os bispos apenas participavam, partilhando parcialmente a responsabilidade universal e o poder. Neste sentido de reforma, aprovaram-se mesmo decretos contra a simonia (compra e venda de bens espirituais, cargos eclesiásticos, perdões, etc.) e o nicolaísmo (mancebia de clérigos e hereditariedade dos seus bens).
E seria Nicolau II (1059-1061), num sínodo reunido em Latrão (Roma), em 1059, a estabelecer as leis de eleição dos Papas que ainda hoje vigoram. O colégio eleitoral, composto por cardeais em conclave, era o único responsável por esta eleição, afastando da mesma a nobreza romana ou itálica e também o todo poderoso imperador germânico. Neste sínodo lateranense de 1059 defendeu-se ainda um princípio revolucionário, de consequências intemporais e de grande alcance: a liberdade da Igreja.
A liberdade da Igreja
A liberdade neste caso significava liberdade de quaisquer interferências alheias à Igreja e aos seus valores espirituais e morais. Neste sentido, surge a figura de Gregório VII (1073-1085), o mais importante Papa desta época, símbolo do triunfo da monarquia centralizadora papal. O seu famoso manifesto, “Dictatus Papae”, assim o proclama. Com efeito, nele se plasma que o Papa é o chefe supremo e absoluto da Igreja universal, com o direito de depor não apenas bispos mas também reis, cuja função lhes foi atribuída por Deus, através da Igreja. Muitos veem aqui uma intromissão espiritual no temporal, mas só assim a Igreja afirmou a sua posição na Cristandade.
Depois vem o sínodo romano de 1075, no mesmo ano daquele manifesto. Neste sínodo, proibiu-se de forma clara a investidura dos leigos, o que fez estalar o conflito com o imperador germânico Henrique IV. Este respondeu com a destituição do Papa. Mas apenas na ordem, que não foi aplicada. Os tempos tinham mudado. Em 1076, em plena Quaresma, Gregório VII declarou a excomunhão do imperador, destituindo-o, desvinculando os seus súbditos do seu juramento de fidelidade. A Cristandade estarreceu, estupefacta. O Papa, consciente e afirmativo do seu poder, não vacilou, criando um facto inaudito e impensável. Os príncipes eleitores alemães, perante isto, ameaçam Henrique IV de destituição, caso num ano não fosse levantada a excomunhão.
Perante tamanha pressão e humilhação, o imperador vestiu-se de penitente e humildemente foi até ao Castelo de Canossa, onde se encontrava o Papa. Este gesto resultou da mediação de Matilde de Canossa e do abade de Cluny, Hugo. Estava-se em 25 de Janeiro de 1077. Até 28 de Janeiro, Henrique IV teve que permanecer três dias e três noites, de joelhos, às portas do castelo, com frio e neve, vestido como um eremita, penitente, com uma túnica de lã e descalço para poder conseguir o perdão papal. O Papa, findos os três dias, recebeu-o e concedeu-lhe o levantamento da excomunhão sob certas condições, que Henrique logo esqueceria. Mas estava imposta a penitência, a humilhação do maior senhor temporal perante o Vigário de Cristo. E reforçado ficou, por muitos séculos, o poder do Papa, do espiritual. “Ir a Canossa” significa, no Ocidente, humilhar-se e pedir perdão. Um acto que ficou marcado para sempre na tradição, na memória da Cristandade. O imperador não se converteu em Canossa, obviamente, pois logo recomeçou com a sua prepotência e arrogância, mal a excomunhão lhe foi levantada. Mas o Papa vincou o seu poder.
Na Inglaterra temos outro caso relacionado com esta querela, no século XII. Entre o rei Henrique II, um déspota, e o arcebispo de Cantuária, Tomás Becket, igualmente chanceler do reino. Leis que cerceavam autonomia da Igreja e capacidade de actuação do Papa no reino o inglês, foram o rastilho da contenda. O arcebispo opôs-se. O exílio foi o caminho apontado, durante seis anos. Regressou a Inglaterra, mas por pouco tempo. Verdugos a mando do rei assassiná-lo-iam barbaramente em 1170. O povo aclamou-o, como mártir que era, com o seu túmulo a merecer a romagem de peregrinos desde então.
Só na concordata de Worms, entretanto, se encontrara algum equilíbrio nesta querela fracturante, estabelecendo-se os princípios da separação dos poderes espiritual e temporal. Por exemplo, os bispos não eram mais funcionários de Estado. Do temporal. Mas sim do espiritual. Mas não existia harmonia: a heresia espreitava…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa