Posto de contemplação
Boia o corpo inerte de uma tartaruga, inchado e de borco, nas águas da baía de Kudat, triste apontamento para um manso final de tarde nessa pacata cidadezinha onde aproveito para matar saudades de umas “parothas” e “teh tariks” como devem de ser. O “Madras”, restaurante tamil, é dos poucos a manter portas abertas até às dez da noite, grande é a ousadia pois o povo daqui deita-se com as galinhas.
Quem diria que foi outrora Kudat o mais importante entreposto do norte do Bornéu?
Saio do “Madras” no momento em que desaba a diária torrente diluviana e trovejante, certa como um relógio com a corda em dia.
A descoberta de petróleo nas redondezas de Kudat por Franz Witi, obscuro empregado da BNBC, nos idos finais de Novecentos, mudou radicalmente a vida de umas quantas tribos de rungus deste extremo nordeste, às quais se agregariam, em vagas regulares, mercadores malaios que de sazonais visitantes passariam a moradores permanentes. Fundada a cidade, em 1881, decide a empresa estabelecer aí a capital do Bornéu do Norte Britânico, oficialmente assim designado apenas em 1882. Precavidos, os colonos tratam de selar um pacto de amizade com as amigáveis comunidades locais, representadas por Temenggung Kurantud, no caso dos animistas rungus, e por Datu Harun, no caso dos islâmicos malaios.
O passo seguinte dos ingleses, que tudo definem pela bitola do deve e haver, foi a importação de mão-de-obra chinesa para os campos desocupados, e isso porque, no entender do rompante governador Crocker, as “raças de fora” mostravam-se de muito superior “valor produtivo e industrial” que os nativos do Bornéu. Gente que só “após muito tempo”, ou seja, após treino e chicote, quereria certamente dizer Crocker, poderiam almejar a alguma valia a nível individual. A expressão utilizada é: “valuable assets to the State”, o que diz muito dos novos senhores instalados naqueles domínios. Assim, foram oferecidas passagens gratuitas nos vapores (dos muitos que na altura saíam da barra de Macau, por exemplo) aos chineses dispostos a trabalhar para a Companhia. A proposta, como seria de esperar, atraiu camponeses da China feudal que debandaram o porto de Kudat, mas também o de Sandakan, em busca de melhor vida.
Em 1885, dos 937 residentes de Kudat 348 eram chineses, à semelhança do acontecido em Jesselton, e maioritariamente de etnia hakka. Desses, 222 trabalhavam como lojistas e merceeiros. A imigração chinesa continuaria ao longo dos anos. Vê-se. Todo o comércio local, à excepção de uns quantos restaurantes indianos, está nas mãos dos chineses. De manhã bem cedo, os descendentes desses pioneiros correm os estores das respectivas lojas revelando-nos assim qual o ramo da sua actividade.
Informa-me a menina chinesa da recepção do hotel que adiada ficou, “por tempo indefinido”, a anunciada inauguração de uma carreira regular de um ferry de passageiros entre Kudat e Puerto Princesa, na bela ilha filipina de Palawan, que tive de privilégio de conhecer (já lá vão mais de vinte anos) livre de turistas e piratas terroristas (os dessa altura eram apenas piratas, o que é muito mais romântico e de longe menos perigoso).
Com a presente instabilidade, substancialmente agravada nos primeiros meses deste ano apesar das campanhas militares que Duterte pôs em marcha em Jolo, numa tentativa de desalojar as víboras do seu ninho, não se prevê qualquer ligação marítima entre os países vizinhos num futuro próximo.
Por enquanto, Kudat é simples ponto de passagem ou de pernoita (o meu caso) para quem se dirige a Simpang Mengayau, ou melhor dizendo, Ponta do Bornéu, até ver, poupada ao turismo de massas. É muito provável que a recente melhoria da estrada (que já usufrui) venha a alterar a situação.
Após dezenas de quilómetros de asfalto abrigado por esguios coqueiros – o coco, à semelhança dos frutos do mar, é relevante riqueza na região – deparo, para meu espanto e alegria, com uma Simpang Mengayau praticamente deserta.
Serve-me na perfeição um bangaló de tábuas e tecto de zinco no extremo daquela mancha de areia branca em forma de lua em quarto crescente, e pouco me importa o exagerado preço face ao que é oferecido. Em frente há mar, e mesmo ao lado pranchas de surf à mão de colher.
Nada tenho para relatar em dias assim, os melhores que posso almejar, enfiado na água a maior parte do tempo, e aos fins de tarde, quando arrebitam as ondas, acompanhado de meia dúzia de catraios que nem sabem a sorte que têm de viver num sítio assim.
Quais escolas de surf, quais fatos impermeáveis neoprene. Aprende-se a arte à força de tentar – o infalível método tentativa-erro – e aos oito, nove, dez anos, já se cavalgam cristas com toda a elegância e naturalidade.
Não me tirem daqui pois não quero daqui sair.
No extremo oposto da baía a que dão o nome de Kalampuniam, toda ela ensombreada por centenas de casuarinas, há uma meia dúzia de botes de pesca ancorados e outros tantos bangalós e ainda uma colina com um restaurante com as melhores vistas para o mar do Sul da China e o Mar de Sulu.
A pimpolha ilhota em frente parece servir de marcador, alinhada com a protuberância rochosa qual cauda de réptil afunilada prolongado-se mar adentro, fazendo do local excelente atalaia de contemplação. Com uma permanente brisa a ajudar.
Joaquim Magalhães de Castro