Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXIX

O Anticlericalismo – II

Começámos na última edição a falar de anticlericalismo. Um fenómeno social, político enfim, que teve grande repercussão a partir da Revolução Francesa, acentuando-se no século XIX e assumindo no século XX as formas mais violentas. Impregnou-se e provavelmente não desapareceu. Muitos o confundem com o fenómeno “anti-religioso”, a laicização, a secularização, entre outros. Nem sempre é usado o termo, quase sempre mal usado na realidade. Opondo-se ao religioso, historicamente opõe-se ao Catolicismo, tendo derivado para outras religiões ou formas de Cristianismo. No que toca à Igreja Católica, o anticlericalismo, curiosamente, dela procede, de certa forma, por reacção e até mesmo por filiação.

Já aqui salientámos que o anticlericalismo insiste na necessidade da separação do religioso e do profano, do espiritual e do temporal ou secular. Estriba-se no postulado da liberdade de consciência individual. Dentro destas convicções, premissas, o anticlericalismo evoluiu em estreita relação com o objecto da sua oposição, que combate e com que luta de forma quase excruciante: o clericalismo. De um modo mais lato, diríamos que com as religiões no seu todo. Ou, como diziam alguns anticlericais célebres, nada contra os homens, apenas contra as instituições. Daí, em certa medida, a confusão que campeia no senso comum entre este termo e o “anti-religioso”.

Um célebre historiador e politólogo francês, católico, René Rémond (1918-2007), referia que “o anticlericalismo comporta um elemento irredutível e que é uma desconfiança, quem sabe uma aversão insuperável para toda a Igreja. Mesmo que o fenómeno religioso fosse pouco clerical, em si mesmo, esse fenómeno, per si, já consegue irritar e inquietar política e socialmente, logo desencadeando, por isso, o anticlericalismo. O anticlericalismo deve, portanto, ser considerado como um factor constante no campo das ideologias”. Os estudiosos do fenómeno, todavia, consideram que apesar do anticlericalismo se ter assumido como uma componente essencial no Iluminismo e no período liberal subsequente, com o tempo, como se vê nos dias de hoje, foi-se convertendo num fenómeno minoritário, no âmbito das religiões em geral. Mas permanecendo vivo!

 

Críticas, animosidade, intolerância

A Igreja não é uma sociedade como as outras, um “grupo” igual a outros. Mas antes um todo separado. Individualizado e com um cunho próprio. Uma identidade consolidada e coesa. Por isso, talvez, o anticlericalismo mais vulgar, primário, não tenha nunca deixado de zombar cada uma das especificidades ou singularidades do religioso. Ou melhor, do universo clerical católico. Como as sotainas, os hábitos, tonsuras e cruzes, ou então, no plano imaterial, castigando severamente a castidade ou o celibato. Quanto mais vai ao detalhe da acusação ou ataque, mais se tonaliza o anticlericalismo. Por exemplo, o anticlericalismo é mais verrinoso e agudo com o clero regular, as ordens religiosas, do que com o clero secular ou paroquial. Pois precisamente por causa dessa vertente “paroquial”, a animosidade foi sempre maior com os frades, monges e clérigos regulares ou de congregações, do que com os clérigos diocesanos. Estes últimos, pregam os anticlericais, estiveram sempre mais próximos do povo, na sua vida paroquial, não refugiados entre muros de mosteiros ou conventos, em arcas de conhecimento ou bibliotecas vetustas.

A fúria anticlerical, ilustrada ou popular, recaiu sempre, a começar pela Revolução Francesa (que preferiu desde logo o clero secular aos “reguliers”), sobre os religiosos “sub regula”. Daí a extinção das ordens religiosas, uma moda liberal que visava, na realidade, a apropriação de bens temporais e respectivas riquezas para amortização de dívidas públicas ou entesouramento de capitais. Era preciso pagar-se revoluções, premiar os novos heróis ou os novos senhores da nova situação, os “novos viscondes” saídos das turbas revolucionárias. As novas leis acusavam a legislação canónica de manter imutáveis direitos antigos, fundiários por exemplo. Era preciso redistribuí-los: eram a fonte de riqueza mais à mão e que apenas implicava novas leis e deixar-se o abuso e a estultícia populares correrem ao sabor das fúrias revolucionárias de matriz jacobina. Os pobres monges e frades não ofereceriam resistência e os seus bens, as suas propriedades, seriam facilmente alienadas. Sim, a coberto do conceito de anticlericalismo. Nada contra as pessoas, tudo contra as instituições.

Sim, pois a Igreja era uma ameaça. Contra o Estado, dizia-se. As tentações galicanistas poderiam resolver tudo isto, mas a “ameaça” resistira sempre. O “povo soberano”, sem perceber muito bem porquê, era arrastado na fúria revolucionária pregada nos novos púlpitos pelos novos arautos. Que pregavam que a Igreja era também contra a Nação, pois a Santa Sé era um poder central além-fronteiras. Que comandava desde lá longe. E as ordens religiosas, os tais “reguliers”, tinham as suas “sedes” e superiores centrais lá longe, em torno do Papa. Por isso, era preciso escorraçar esses regulares. Esqueciam-se os tais arautos que os sacerdotes diocesanos eram-no porque incardinados em dioceses, que obedeciam, claro, também a Roma, lá longe também…

A Igreja era também ameaça ao indivíduo, como à família. Através da confissão, das catequeses, da “manipulação de consciências”, do controlo da juventude. E claro, através da captação das heranças, através dos legados pios e testamentos, quais manipulações familiares.

Outra crítica era a incoerência na observância por parte dos clérigos dos seus preceitos e do que advogavam como correcto. Honestidade, desinteresse e desapego material, castidade, mortificação e sacrifício, vida virtuosa – tudo isto os anticlericais recusavam, porque, acusavam, os clérigos também não cumpriam. Daí à defesa do matrimónio nos sacerdotes foi um passo. No exame de consciência, se fora feito, aliás, dos anticlericais, terá sido porventura avaliada a moral do poder, dos políticos e das autoridades várias? Ou dos que apregoavam o anticlericalismo?

Por isso apareceu um anticlericalismo contra as hierarquias, ou as “castas” superiores da Igreja e dos clérigos, não toda a instituição. Todos seriam iguais, mas talvez uns mais iguais que os outros: e esses mais iguais, deveriam ser combatidos!

O anticlericalismo foi também muitas vezes erroneamente confundido ou agregado ao livre pensamento. É outro erro do senso comum, de muitos letrados também, nestes tempos em que a história, a filosofia, as humanidades são esquecidas, suscitando erros álacres desta bitola. Como também se erra quando se diz que o anticlericalismo é de esquerda. Não pertence a nenhuma família política, como veremos. Tema fecundo, é também um alfobre rico de erros hermenêuticos e, a montante, de definição e de correcção histórica.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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