A Questão Social – II
O século XVIII viu surgir e consolidar-se um ambiente de secularização, de anticlericalismo e de acentuada descristianização, principalmente nos sectores intelectuais, mas alastrando-se depois às massas populares, à sociedade em geral. A credibilidade das igrejas cristãs foi sendo enfraquecida, por vários filósofos e pensadores, depois por boa parte da sociedade. Eram-lhes apontadas contradições, reais ou aparentes, além da influência negativa que exerciam sobre as populações. À Igreja era apontado ainda o travão que impunha ao progresso e à modernização da sociedade, sendo acusada de tradicionalista, conservadora. Era preciso isolar e marginalizar a Igreja, enfraquecê-la, eliminar a sua influência, ou pelo menos reduzi-la. Tudo em nome da mudança na sociedade. Estava-se perante a secularização. Mas, entretanto, quem olhava pela nova sociedade? Dos marginalizados e dos deserdados da roda do novo progresso e da modernização? Da sociedade industrial e das injustiças que alimentava?
A Questão Social estava ao rubro nos novos tempos de Oitocentos. As revoluções de 1789 (França), 1830 (França, novamente) e 1848 (Europa Central) encerraram uma época, dominada pela tradição e pela religião. Prometeram e lançaram expectativas de um presente melhor e de um futuro de progresso, com uma nova sociedade, diferente pelo menos. Defendiam o derrube dos obstáculos a essa nova sociedade, entre os quais estava a Igreja.
Mas os ventos não corriam assim tão de feição para o povo, para os pobres principalmente. A emancipação, a esperança e a mudança que pairavam no ar, sopradas pelos teóricos do progresso, eram apenas fumo para muitos, promessas vãs e amanhãs que nasciam piores que as vésperas de sofrimento e angústia.
Este clima de euforia revolucionária que se pretendia implantar não era mais que uma forma de travestir as agruras do quotidiano, o presente que apenas se mudou do campo para a cidade, mas que em quase tudo piorou o que pior já era. O espírito anti-religioso era mais um tónico de incentivo, exalado pelos meios cultos para a sociedade operária. Os jacobinos de 1789 permaneciam encapotados de teóricos da revolução e do progresso, a qualquer preço e sem a religião. O anticlericalismo, ou melhor, o anti-religioso estavam mais fortes do que nunca.
Angústias e mais angústias
A Igreja enfrentava o pior período da sua longa história. Mas com triplicadas responsabilidades ou frentes de luta. Por um lado, defendia-se e respondia às objecções doutrinais emanadas dos meios intelectuais contra si; por outro lado, procurava a reconciliação com o Liberalismo, fazendo acertos e equilíbrios, difíceis e sensíveis, mas lá foi construindo; a somar a esses dois pesados escopos, tinha ainda a sua vocação filantrópica e altruísta, um desígnio que assentava também no seu esforço de compreensão da questão social, do significado e da mentalidade dos operários, o novo grupo crescente entre o povo. E nesta última frente, surgia um novo desafio: o Socialismo. Ou seja: uma resposta ao mesmo problema da Questão Social, mas sem Deus nem Igreja.
O Papa Pio IX (1846-1878) abriu o debate, talvez de forma fulminante e comprometedora para o futuro próximo, dedicando uma passagem do seu syllabus “Quanta Cura” ao Socialismo. Denuncia esta ideologia como uma ilusão, acusando-a de pretender substituir a Igreja pelo Estado. A par das críticas ao Socialismo, denuncia também o carácter pagão do liberalismo económico, acusando-o, profeticamente, de prescindir da moral nas relações entre o capital e o trabalho. Na Alemanha, o bispo de Mainz, Wilhelm Emmanuel von Ketteler (1811-1871), tentava provar que a solução para as angústias e problemas do mundo operário não se podia conceber senão em função de uma visão geral da sociedade capaz de se opor tanto ao individualismo liberal como ao totalitarismo do Estado centralizador de pendor socialista, como se prefigurava na época. Este prelado foi a figura da Igreja que mais atacou o Socialismo, ou que mais pugnou pela liberdade da Igreja em relação ao Estado.
Von Ketteler desenvolveu os grandes temas do cristianismo social, tendo sido apelidado de “Bispo Social”, sendo mais um prático que um teórico, ainda que se tenha distinguido neste âmbito. A ele, com efeito, é atribuída uma importante influência nas posições futuras da Igreja manifestadas na encíclica “Rerum Novarum” (1891), de Leão XIII (1878-1903), em relação à Questão Social. O Papa Bento XVI (2005-2013), por exemplo, não deixará de mencionar este seu compatriota na encíclica “Deus Caritas Est” como sendo um dos principais pioneiros da Doutrina Social da Igreja. O bispo de Mainz foi de facto uma das mais importantes figuras da Questão Social no século XIX, envolvendo-se profundamente na luta contra a pobreza na Alemanha industrial. Assistência, educação, amparo dos pobres, findou instituições de apoio social na Igreja na Alemanha e ao mesmo tempo defendeu os trabalhadores alemães, exigindo aumento dos salários e melhoria das condições de trabalho. Ao mesmo tempo, incitou a criação de condições de conforto espiritual e integração social das massas operárias desenraizadas e atiradas para as cidades. Este rosto da Questão Social é muitas vezes recordado como “Bispo Operário”.
Mas não faltaram outros bons exemplos na Questão Social, em que a Igreja se envolveu decisiva e decididamente. Muitos foram os que estudaram o(s) problema(s) e sugeriram, ou criaram, soluções. Pessoas e instituições, refira-se. Lamennais (1782-1854), Ozanam (1813-1853, fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo) na França, como outros na Bélgica, Alemanha, Áustria, Espanha, Estados Unidos, ou, na actual Itália, o mais célebre de todos, São João Bosco, o santo dos jovens.
Os reformadores sociais cristãos encetaram uma clara evolução em termos de pensamento e de acção. No princípio, acreditavam que a miséria social era essencialmente um problema de reforma moral, procurando o seu remédio na prática da caridade. Mas as experiências pessoais e o mundo à sua volta fizeram muitos teóricos reformadores entenderem que a reforma interior do indivíduo não era suficiente e que era necessário encetar a reforma das instituições. Aqui a Igreja demonstrou a sua criatividade e fecundidade, traduzindo ideias e conceitos em iniciativas e formas de acção, além de criarem inúmeras instituições e obras pias de intervenção e mudança contra o deflagrar da miséria humana na sociedade industrial moderna. Tudo sem a Igreja possuir poder político, recorde-se, além de não aceitar a luta de classes.
Não deram nas vistas, mas foram eficazes as associações cristãs no combate à pobreza, a minorar a miséria e o sofrimento das classes operárias, nos amontoados de milhares de pobres e imigrantes sem pão ou consolo espiritual. Melhores dias se esperavam….
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa