Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXII

Tempo de mudanças

E tudo o século XVIII mudou! As Luzes e a Revolução tudo mudaram. Nunca mais nada seria igual. A Igreja foi das instituições que mais mudou. Para sempre, dir-se-ia. As convulsões foram muitas ao longo de Setecentos. As cisões, as revoluções, as rupturas e as crises ameaçaram a estabilidade e reformas iniciadas em Trento (1545-63). O triunfo da Igreja no Barroco foi posto em causa pelo Iluminismo, pela Razão, pela Revolução. Mas se a glória e o fausto se mitigaram, a instituição, apesar dos abalos e crises, manteve-se e procurou adaptar-se aos novos tempos do Século das Luzes.

O Homem, na sua condição e existência, procurou, desde sempre, saber quem é e como explicar-se a si próprio, a sua origem, a da sua vida, o seu destino, o cosmos… O ser, a morte, foram sempre aspirações intemporais de conhecimento por parte do Homem. No século XVIII, o Homem começou a usar cada vez mais a Razão, muitas vezes esqueceu ou relativizou Deus, secundarizou-O. Sempre recorreu à Revelação, nunca pondo em dúvida as Escrituras Sagradas, mesmo que cada vez mais autores tenham surgido com teorias discordantes em relação às narrativas bíblicas sobre a Criação, por exemplo. O Génesis era cada vez mais interpretado e já nem sempre lido de forma literal e incontestada. Como o Êxodo, o Dilúvio, ou até a Vida de Jesus.

O século XVIII enfatizou ainda mais estas novas leituras e interpretações, por via da importância crescente da Razão. As dificuldades para a Igreja cresceriam, como temos visto. A Igreja era posta em causa, na sua organização, actuação e essência. A Guerra dos Trinta Anos (1618-48), no século XVII, deixou fracturas e feridas abertas durante muito tempo. Religiosas principalmente, estas fendas debilitaram a Igreja Católica e as Igrejas Protestantes, pois as críticas às rivalidades e divisões no Cristianismo tornaram-se mais ferozes e abertas. A religião passou a ser condenada, enquanto causadora de tanta dilaceração no mundo. A Razão roubou o exclusivo do Cristianismo no domínio do conhecimento e da explicação do mundo e de todos os anseios do Homem. Já falámos dos deísmos, da indiferença, como resultados de todo este processo.

 

A GRANDE MÁQUINA DA RAZÃO

A religião provoca tantos males, acusavam os racionalistas. Por isso, é má, rematavam. O povo desconfiou destas sentenças, mas era cada vez mais os que a intuíam e validavam. Enciclopedistas, iluminados, chamemos-lhes pelas suas várias denominações, abraçavam a causa da tolerância e abertura de um certo relativismo. Nesse âmbito, acabavam a acusar as religiões, com destaque para a Igreja Católica, de rigidez e impenetrabilidade, intolerância. Dogmatismo, fanatismo, eram também acusações que pendiam sobre a Igreja, pois geravam confrontos, morte e sofrimento.

A Tradição era posta em causa. As crenças e práticas, que dela derivam ou a alimentam, eram atacadas. O sobrenatural perdia influência, tal como as explicações que nele se estribavam. Já não satisfaziam as explicações sobrenaturais para os vários fenómenos. Pelo contrário, as leis pré-determinadas eram mais consideradas. A Tradição era substituída pelo Progresso. O Universo já não era regido por Deus, para muitos, mas antes pela “Grande Máquina”, como dizia Locke (1632-1704), o grande iluminista inglês e pai do Liberalismo, para muitos. A Grande Máquina era movida pela Razão, mas era uma “divindade” que não se conhecia muito bem, ou não se sabia em que consistia. É curioso que nesse desconhecimento e dúvidas perante ela, pareceu mais suficiente para os iluminados ou racionalistas do que… Deus!, que fora, assim, substituído por uma divindade, por aqueles que criticavam o divino, o sobrenatural, o inexplicável… Muitos destes achavam que a Revelação só complicava…

O Homem é bom por si mesmo, em si mesmo, não fôra corrompido pelo pecado nem necessitava de uma redenção que viesse do transcendente para o salvar, afirmavam os arautos da nova antropologia, como Voltaire ou Rousseau. O homem era auto-suficiente, capaz por si próprio, com a Razão, a ser feliz, a descobrir a verdade das coisas e a fazer o bem, sem precisar de Deus, diziam. Pois a Razão estava distribuída por igual em todos os homens e povos, sendo a única via legítima para a verdade.

Era o tempo da rejeição da Revelação, do mistério, do sobrenatural, do metafísico. Era o tempo da religião natural, reduzida a um subjectivo e subtil deísmo, sem mais, em que a essência divina permanecia afastada, longínqua, impossível de conhecer, mas preocupada, claro, com o homem e os seus problemas, o seu devir. Era uma outra forma de designar Deus, mas com as mesmas funções e características… A diferença estava na forma como se submetiam a essa divindade. Ou seja, sem sonhos ou quimeras metafísicas, diziam, com uma política onde não existia o Direito Divino, uma religião onde não havia mistério, nem uma moral sem dogmas, mas sim natural e livre.

A consciência individual do homem passa a imperar, em detrimento dos deveres para com Deus e o soberano. Esse direito a uma consciência livre e individual irmanava, para os racionalistas, com o direito à crítica, ao uso da Razão, ao sentido do homem e da cidadania. À verdade absoluta revelada por Cristo contrapunha-se a tolerância e o Relativismo; a modernidade vinha também substituir o imobilismo rígido do Antigo Regime e do Feudalismo, tal como a Liberdade tomava o lugar da hierarquia e do magistério da Igreja, ao mesmo tempo que a religião natural e o mito do “bom selvagem” se opunham ao Evangelho e ao Pecado Original. Só se deve acreditar no que se entende, comprova, mede, pesa, não há lugar à presença do mistério como nas religiões, como a Católica, atiravam os filósofos deístas do Iluminismo racionalista. Kant, um homem espiritual, a par de grande filósofo, chegou a referir que a religião enquanto instituição, disciplina de culto e modo de pensamento, tinha que se enquadrar a partir de então nos limites da Razão…

Era pois toda uma época que era substituída por um tempo novo, uma nova sociedade, uma nova filosofia. A Tradição dava lugar à Liberdade, os poderes eram separados e a história servia para justificar a negação do Direito Divino. Negava-se a mediação do dogma, da instituição, da Revelação, da religião positiva, ou seja, de todos os “instrumentos” de mediação entre o homem e Deus. A Igreja Católica chegou a ser apodada de “infame”, por Voltaire, que apelou à sua destruição, mas de forma indirecta e velada, não tão clara como as críticas dos enciclopedistas às igrejas várias, que acusaram de incentivo à superstição, fomento da intolerância e da barbárie, autênticos travões do Progresso. O homem é bom por natureza e só precisa que lhe ensinem o que está certo. A Razão dá-lhe luz e discernimento, por isso para quê os sacerdotes e o culto?

Começavam tempos de erosão na Igreja, de mudança de mentalidades no mundo que afectariam lentamente o mundo da Fé e da crença da Redenção….

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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