Contra Nestor e o Monofisismo
Como é que a Igreja sobreviveu e pugnou perante estas divisões? Perguntávamos aqui na semana passada. Uma resposta longa. Como longa é a história de todas as fracções, dissensões, divisões, debates, controvérsias, querelas, heresias, cismas. Como se viu, surgira Nestor, depois de Árrio e das questões cristológicas de Niceia. Nestor separava as duas naturezas de Jesus: a humana e a divina. A unidade de Cristo em perigo, atiravam os defensores da ortodoxia. Mais de um século depois de Niceia, reuniu-se um novo concílio – o IV ecuménico – em Calcedónia, em 451. Em tese, estabeleceu-se aí a doutrina cristológica, de forma definitiva. Decorriam também, em Calcedónia, vinte anos do Concílio de Éfeso, III ecuménico, onde se afirmou a Maternidade divina de Maria, contra, novamente, Nestor.
Calcedónia marcou de facto a clarificação cristológica: duas naturezas na única pessoa de Cristo. Condenava-se assim o monofisismo de Nestor. Assim logo se anunciou na primeira sessão conciliar, quando se leu a carta do Papa romano Leão I ao bispo de Constantinopla, Flaviano: a missiva estabelecia que, apesar da união das duas naturezas e substâncias na única pessoa de Cristo, não existe qualquer mistura das duas (naturezas), pois cada uma está ligada e actua em relação àquilo que lhe é próprio. Hoje em dia poderá parecer complicado ou até sem sentido. Naqueles tempos de formação da doutrina, em que a religião dominava a cultura e a sociedade, este debate era sobremaneira central e apaixonante.
No Concílio de Calcedónia fixou-se um símbolo importante, que assim declara: “Nós ensinamos e professamos um único e idêntico Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, completo quanto à divindade e completo quanto à humanidade, em duas naturezas, inconfusas e intransmutadas” – claramente contra os monofisitas – “inseparadas e indivisas” – contra Nestor, obviamente – “pois a união das duas naturezas não eliminou as suas diferenças, cada natureza conservou as suas propriedades e uniu-se à outra numa única pessoa e numa única hipóstase” (a substância, ou natureza de algo).
Apresentou-se uma clara resposta teológica a Árrio, através da formulação teológica do conceito da Trindade, a qual se expressa na igualdade essencial de Cristo e do Espírito Santo com o Pai. O Arianismo, a grande questão e dissidência teológica do séc. IV, apesar de se ter prolongado por vários séculos, perdeu algum fôlego no embate teológico que foi o Concílio de Calcedónia. O Arianismo atacou a Igreja, fez danos, mas acima de tudo acabou por fortalecer a sua unidade, fazendo com que aquela se mantivesse apta a resistir a estas querelas e sectarismos. Graças às suas respostas e afirmações, aos dogmas fundamentais formulados, os concílios foram, como dizia São Gregório I Magno (Papa), juntamente com os Evangelhos, a pedra angular da fé.
O Nestorianismo no Oriente
O Nestorianismo é uma doutrina cristológica proposta por Nestor, Patriarca de Constantinopla (428 – 431). A doutrina defende a separação entre as naturezas humana e divina de Jesus. Nestor e os seus ensinamentos foram condenados como heréticos no Concílio de Éfeso em 431 e no Concílio de Calcedónia em 451. Nasceu assim o chamado “cisma nestoriano”, no qual as igrejas que apoiavam Nestor abandonaram a Igreja.
Todavia, o Nestorianismo espalhou-se por toda a Ásia a partir do Mediterrâneo Oriental. É importante sublinhar que nem todas as igrejas afiliadas com a Igreja do Oriente tenham seguido a cristologia nestoriana. Mas algumas afirmaram-se graças à sua adesão ao Nestorianismo, como a comunidade cristã da Pérsia, perseguida pelos zoroastristas, principalmente depois do cisma de Calcedónia. Recordem-se que as igrejas que não reconheceram as afirmações de Calcedónia ficaram cismáticas ou igrejas “não-Calcedonianas”. São exemplos as seguintes Igrejas ortodoxas orientais: a Igreja Ortodoxa Copta ou Egípcia, a Igreja Ortodoxa Síria, a Igreja Apostólica da Arménia e a Igreja Ortodoxa da Etiópia. E chegará ao Extremo Oriente. Mas vejamos como.
Em 486, Barsauma, o metropolita de Nísibis (actual Nusaybin, Síria), considerou publicamente o mentor de Nestor, Teodoro de Mopsuéstia, como uma autoridade espiritual. Em 489, quando a Escola de Edessa (em Edessa, Mesopotâmia) foi fechada pelo imperador bizantino Zenão I devido às suas tendências nestorianas, mudar-se-ia para Nísibis, provocando uma vaga migratória nestoriana para a Pérsia. O Patriarca da Pérsia acolheu os nestorianos e adoptou mesmo a sua doutrina entre as comunidades cristãs. O que permitiu uma maior irradiação desta dissidência. Através de esforços missionários, que estabeleceram dioceses e missões desde a península da Arábia até à Índia, além do Egipto. A Ásia Central foi contudo uma das regiões onde as missões nestorianas mais se implantaram, onde convertem algumas tribos tártaras. Ao longo do caminho da futura Rota da Seda – uma rota nestoriana, diga-se, aproveitada por viajantes na Idade Média e missionários cristãos – estabeleceu-se uma via nestoriana.
A China foi também tocada pelos nestorianos, entre 618 e 907, durante a dinastia Tang. Os primeiros cristãos a atingirem o Império do Meio eram nestorianos. Alguns autores referem que dois monges vieram pregar na China no séc. VI, tendo levado no regresso casulos de seda. Outros historiadores são mais cuidadosos, porém, e referem que não há qualquer certeza dos dois monges serem nestorianos. No entanto, a primeira referência escrita, documento histórico portanto, ao Cristianismo na China é a Estela de Da Qin, esta sim nestoriana, atestando que em 635 alguns cristãos nestorianos estiveram em Xi’An, antiga capital imperial, onde receberam autorização para estabelecer locais de oração e poderem propagar a sua fé. Não se conhece a composição do grupo nestoriano, apenas que o seu líder era Alopen, segundo a inscrição na estela.
Todavia, historiadores modernos questionam se seriam mesmo doutrinalmente nestorianos, ou apenas assim designados, por analogia às comunidades da Ásia Central. Sabemos sim que a partir de 845, nas grandes perseguições anti-budistas do imperador Wu Zhong, pelo meio foram também perseguidos cristãos, mas em referencia clara a serem ou não nestorianos.
A Ocidente, mais heresias emergiam, mais cismas e controvérsias, debates teológicos…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa