As primeiras heresias cristãs
Começa um novo ano. Inicia-se uma nova temática nesta página d’O CLARIM: a procura de um esclarecimento na História da Igreja, e em geral nos seus contextos, das divisões, cismas, reformas, heresias e rupturas entre os cristãos. Ao contrário do Judaísmo, que se liga à história de um povo, o Cristianismo é uma religião de missão, plural e universalista, com uma mensagem de salvação destinada a todas as nações e povos. Por isso, a mensagem difundiu-se por todo o lado, tocando gentes de várias regiões, povos, costumes, tradições, línguas e formas de conhecimento, pobres, ricos, gente de todas as condições, do centro à periferia. Todavia, eram por isso muitas as interpretações, opiniões e até observâncias…
“É necessário submetermo-nos aos presbíteros e aos diáconos como a Deus e a Cristo. É preciso fugir de tudo o que é doutrina vã e vazia e do erro comum, é necessário permanecermos firmes nos mandamentos do Senhor e no que o Senhor ensinou.” Assim escrevia Policarpo de Esmirna (69-155), discípulo de São João [Evangelista], aos Filipenses. Palavras sábias que denunciavam dificuldades de interpretação. Ou seja, dificuldades criadas entre os cristãos por todos aqueles que afirmavam doutrinas e teorias que não se encaixavam na mensagem evangélica. Ou seja, naquilo que se desenhava como a “ortodoxia”.
Mas o que é a ortodoxia, afinal? Vicente de Lérins (faleceu em 450), monge e autor eclesiástico gaulês (França), também assim se interrogou, propondo a seguinte resposta: ortodoxia é “aquilo que sempre, aquilo que em todo o lado, aquilo que por todos foi acreditado.” Daí que todas as novidades, pensamentos mais subjectivos, ou intentos de criar concordâncias entre os Evangelhos e outras religiões ou teorias contraditórias, mais não faziam do que criar ou facilmente desembocar em heresias. As quais mais não eram, no início e ao longo da história, do que selecções de mensagens evangélicas às quais se acrescentavam outros temas, nuances e, principalmente, interpretações que nada tinham a ver com a mensagem de Jesus. A maior parte das vezes, eram simplificações mais atraentes ou sem tanto sacrifício, exigências ou dificuldades, mais fáceis de acreditar, mas completamente desviadas da ortodoxia, ou seja, do verdadeiro caminho, a doutrina aceite. Heterodoxia significa “opinião diferente”, em Grego, ou “outra opinião”, outra via, um desvio do padrão ou da doutrina. De heterodoxia deriva o termo heresia.
Recordemos que a definição teológica e doutrinaria daquilo que é a ortodoxia, ou “doutrina direita”, começa logo na segunda metade do séc. II, com Santo Irineu e São Justino. Estes autores aparecem como os primeiros defensores da ortodoxia da fé, enquanto património comum transmitido pela sucessão episcopal e pela “verdadeira” tradição que daí advém. Considerava-se herético quem não aceita esta tradição. Mas as primeiras heresias apareceram em relação com aspectos doutrinais.
AS PRIMEIRAS HERESIAS
Quais eram então os principais pontos da fé cristã, da doutrina? Eram o monoteísmo, a Trindade, a Santa Igreja, a Penitência para o perdão dos pecados, o Baptismo e a Ressurreição. O entendimento e interpretação destes pontos era um objectivo constante dos teólogos, de forma a explicar e clarificar a ortodoxia. Mas muitos cristãos advinham do paganismo ou do Judaísmo, tinham aí as suas raízes culturais e gnoseológicas, do seu conhecimento. É fácil perceber então como rapidamente surgiram tantas teorias e doutrinas, algumas com grande êxito, a pretender explicar o Cristianismo não a partir da revelação de Jesus, mas antes a partir de um conhecimento superior ou de uma fidelidade a tudo aquilo em que dantes acreditavam e que era incompatível com a Boa Nova. Simão, o Mago, Paulo de Samóstata, Valentiniano, Sabélio, os Gnósticos, Novaciano, os Montanistas, muitos são os que individualmente ou em grupo apresentaram doutrinas e interpretações que seriam rejeitadas e condenadas pela Igreja.
Tentavam-se, muitas vezes, vínculos entre a doutrina da Igreja e estas novas tendências também, mais do que apenas exercícios teológico-filosóficos de interpretação ou explicação ao povo. A heresia era sempre o caminho mais fácil.
Para uns o Antigo e o Novo Testamentos eram em si contraditórios, diziam alguns que falavam de um Deus diferente, ou de vários deuses, por exemplo. Outros não conseguiam conciliar a divindade de Jesus com a unicidade de Deus. Não reconheciam, pois, Jesus como Deus e como homem ao mesmo tempo, considerando-o ou um simples homem que fora possuído pelo Espírito Santo no baptismo, ou, de forma contrária, uma nova “forma” do Pai se apresentar, rejeitando assim a distinção pessoal entre o Filho e o Pai. Ou então afirmavam mesmo que se tratava de três revelações distintas do mesmo Deus: como Pai, na Criação; como Filho, na Redenção; como Espírito Santo, na santificação dos homens. Por aqui podemos aferir a confusão que reinava por vezes e a proliferação de entendimentos que rapidamente se afastavam da ortodoxia (não confundir com as Igrejas Ortodoxas, ulteriores).
UM EXEMPLO: OS GNÓSTICOS
Para percebermos as divisões, rupturas e cismas no futuro da História da Igreja, temos que começar pelos gérmenes, que foram as heresias. Uma das mais importantes dos alvores da fé foram os Gnósticos. Trata-se de uma heresia baseada numa concepção de salvação através da gnose (de gnosis, “conhecimento”, em Grego): o conhecimento religioso salvador por si mesmo. Os Gnósticos interpretavam alegoricamente as Sagradas Escrituras e inundavam-nas de conceitos da filosofia platónico-pitagórica, além de serem ferozmente dualistas: Deus e a matéria eterna. Acreditavam que este mundo é irremediavelmente mau, que foi criado por um Demiurgo cruel e vingativo, o Deus criador do Antigo Testamento. O verdadeiro Deus é por isso desconhecido, e só através da gnose, revelada por Jesus aos Gnósticos na sua qualidade de predestinados à Salvação, estes descobrem que afinal, na realidade, a sua verdadeira natureza é divina, consubstancial à do tal Deus desconhecido.
Esta teosofia (“conhecimento de Deus”) gnóstica é de facto singular, esotérica uma receita plena de ingredientes vários, mas que conheceu grande sucesso e esteve na origem de muitas heterodoxias e divisões. Os Gnósticos não acreditavam que Deus tivesse incarnado em Jesus Cristo, nem que este tivesse sido crucificado. A primeira carta de São João, por exemplo, é logo no final do primeiro século cristão e na autoria de um dos apóstolos, um libelo contra essas (des)crenças e rejeições gnósticas. Os Gnósticos não davam importância ao baptismo (com água, pois só falavam de baptismo… com fogo!) e à eucaristia. Ainda mal nascia o Cristianismo…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa