CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXIII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXIII

O Pietismo – VII

O Pietismo seguiu o seu caminho, assumindo uma influência crescente nos meios religiosos luteranos mas também na Academia, no universo da Filosofia e da Teologia, do pensamento enfim. Mas também foi sempre vivencial, afectivo, porque profundamente espiritual. No entanto, não deixou de ter vulnerabilidades e fragilidades, sendo alvo de desconfianças e críticas, renúncias também. O postulado pietista de que o desenvolvimento religioso se cumpria essencialmente na esfera da emoção religiosa preparou o caminho para uma exacerbação “artificial” desse sentimento, o que acarretava, segundo algumas vozes críticas, o perigo da insinceridade, do auto-engano e de um forte sentimentalismo, que, na ausência de autodisciplina e sobriedade, poderia criar uma transição fácil para exageros ou práticas menos “ortodoxas”.

Com efeito, a extrema importância atribuída às experiências individuais e à oração espontânea levou a uma comunicatividade que às vezes era difícil de distinguir da loquacidade, ou seja, de uma verbosidade exagerada. Além disso, os que não tinham essas experiências poderiam ser desprezados pelos que as tinham, ou por outros fiéis luteranos, sendo até classificados como pouco espirituais. É significativo, por isso, que um teólogo e académico luterano, ortodoxo e anti-católico, Valentin Alberti (1635-1697), da Universidade de Leipzig, tenha censurado verrominosamente os pietistas, acusando-os principalmente de uma exagerada auto-indulgência. Além disso, a ideia pietista de se permanecer num relacionamento íntimo peculiar com Deus, muito bem vista em Halle, a grande Universidade pietista, não o era tanto noutros meios luteranos. No entanto, esses mesmos princípios foram adoptados e difundidos pelos já referidos Irmãos Morávios, ou Unitas Fratrum, denominação cristã surgida no Século XV a partir dos hussitas e que se reconverteu ao Luteranismo a partir do Século XVI, assumindo uma forte influência pietista, à posteriori.

RUPTURAS E AFASTAMENTOS

Esta atitude de proximidade interior com Deus, que se tornaria no principal factor de distanciamento dos círculos não-pietistas em relação aos pietistas, pode parecer contradizer a ideia de que o Pietismo era caracterizado por uma espécie de estado de “ansiedade”, “depressão”, e que estaria como que a gangrenar com a introspecção, pois nunca tinha um descanso interior, uma tranquilidade. Acusava-se que um crente “avivado” por essa chama de contacto interior permanente deveria estar sempre “avivado”, à procura dos indícios da graça que recebeu, mas desfrutando dessa sua realização apenas ocasionalmente, poucas vezes. Mas os pietistas diziam que se existe contradição esta é meramente aparente, pois a atitude em questão era a consequência necessária da consciência pietista dominante do pecado. Dito noutras palavras, era o resultado de um conceito transcendental único da teoria da bem-aventurança, o que por sua vez explica o motivo pelo qual o Pietismo parecia tão radicalmente desconfiado em relação ao mundo, do qual parecia ter receio.

Mas o Pietismo não deixará, contudo, de exercer uma forte influência na Igreja Luterana, e não só… Ao enfatizar fortemente o cristianismo pessoal no desenvolvimento do cuidado pastoral, o Pietismo forneceu incentivos abundantes e muito relevantes para o cumprimento desses escopos, que foram recebidos de coração aberto pela ortodoxia luterana. O desejo de unir o clero de forma mais estreita e no sentido de facilitar uma troca de experiências mais profícua levou Johann Adam Steinmetz (1689-1762), célebre e activo pastor pietista de Magdeburgo, a organizar conferências pastorais em 1737, além de criar escolas e animar congregações luteranas. Ao mesmo tempo, encetou uma disseminação sistemática de tratados devocionais que abririam novos caminhos para influenciar os fiéis.

Recorde-se, nesse sentido, que o protesto formal de Johann Kaspar Schade (1666-1698) – clérigo pietista que colidiu fortemente com as autoridades eclesiásticas, a dita “instituição” luterana… – contra a introdução compulsiva da confissão privada (Schade defendia a confissão pública, afirmando que o “confessionário era a fogueira de Satanás”) acabou por ser totalmente aprovado pelo Príncipe Eleitor de Brandemburgo, a ponto de se abandonar o uso da confissão privada em 1698, um exemplo que foi seguido por outras igrejas prussianas. Apesar de tudo, Schade, que morreu prematuramente de tuberculose, foi asperamente criticado pelo clero luterano e pela populaça, que queria exumar o seu cadáver e profaná-lo com acintes e condenações.

Este reconhecimento da luta de Schade era o resultado de sérias desordens na vida sacramental luterana. Todavia, a confissão voluntária privada ainda prevaleceu amplamente em muitos sectores luteranos. Ao mesmo tempo, registava-se um avanço fulgurante do Pietismo, que influenciou também o culto público, que como instituição estatal gozava da protecção do Estado em diversas áreas: a sua negligência, por exemplo, poderia ser punida com multas e outras medidas judiciais. A Igreja Luterana, “estatizada”, era extremamente preponderante, não reconhecendo a esfera privada da vida religiosa, ou então dava-lhe pouca importância. A mera existência de reuniões de devoção privada era entendida como prejudicial à posição de autoridade desfrutada pela Igreja, que também acabou por reconhecer gradualmente que a ênfase pietista no cristianismo pessoal agia em detrimento da liturgia luterana oficial. O Pietismo era visto como um “problema” pela “instituição”, que instigava o povo, como sucedeu no caso de Schade, a condenar os pietistas e as suas acções e formas religiosas.

No entanto, embora o Pietismo tenha conseguido tornar a Bíblia inteira disponível para fins homiléticos, para a actividade pastoral no seu todo, em contraste com as compulsivas perícopes (copiosas passagens das Epístolas e dos Evangelhos de uso litúrgico) oficiais, o movimento não conseguiu mudar de forma total ou incontornável a pregação luterana alemã. Ainda assim, conseguiu desempenhar um trabalho notável na esfera da hinódia (ensino e canto de hinos), para a qual estava grandemente qualificado pelo seu cultivo do lado emocional da religião e da sua ternura e calor na expressão religiosa. Embora muitos dos hinos que emanaram dos círculos pietistas tenham sido classificados como muito subjectivos e até sentimentais, num estilo adaptado para uso congregacional, os seus hinários, de um poetismo assinalável e uma grande expressão de fé, são uma das marcas de relevo do Pietismo no Luteranismo: sentimento, interioridade, doçura e elevação.

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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