Os confrades e o tesouro de Vure.
Na ilha indonésia das Flores as celebrações pascais têm o seu ponto alto em Larantuca, matéria, de resto, já aqui por nós abordada. Porém, na ilha de Adonara, mesmo em frente, outro reduto católico assinala essa importante efeméride. São os luso-descendentes de Vure.
Pequenas embarcações fazem a ligação com Adonara, transportando cada uma delas, em média, de seis a dez motorizadas amarradas umas às outras na coberta, junto com os passageiros.
Em Vure, encontro-me com os membros da Confraria local que imediatamente se dispõem a mostrar-me os ornamentos e algumas peças da regalia (tesouro) da aldeia, entre as quais várias esculturas de arte portuguesa e indo-portuguesa que estão guardadas na sacristia da igreja. A este tesouro podemos acrescentar uma cruz de Aviz de idade indefinida, um anjo em madeira – o anjo-meja – uma cruz processional de prata do século XVII e um pano com o símbolo da Casa de Bragança.
Recorde-se que a cruz de Avis era um dos emblemas dos reis de Portugal da segunda dinastia e está em Vure desde a fundação da aldeia. A habitual cruz de madeira carcomida e sem data visível foi colocada junto do cemitério ao pé da praia, que é pouco mais do que um amontoado de pedras e coral salpicados pelos pedaços de cera das velas derretidas. Pintados nas cruzes de madeira ou de cimento há apelidos já vistos e outros menos comuns. Karwayu ou Carvalo (Carvalho), Fernandes, Tuari ou Suari (Soares), Sakera (Sequeira), Wass (Vaz), Diaz (Dias) e Dacosta.
As cerimónias pascais são aqui mais genuínas, mas bastante menos concorridas, dada a exiguidade do palco. Procissões com poucas dezenas de pessoas, uma à tarde e outra à noite, percorrem a aldeia ao longo de várias horas. Os nikodemus transportam os andores, e aqui trajam touca e túnicas cor de laranja e têm a cara coberta com barbas de milho, o que lhes dá um ar bem mais temeroso. Eles constituem, aliás, uma das particularidades da aldeia, como o são, de resto, as designações das diferentes capelas. Krus Kosta, Krus Pecado e Sinhor Algemado. Também o nome das ermidas – Fortaleza, Guarda e Mestri de Campo – e de certos cargos – mordima (mordomo), jentera (?), smoor (um termo holandês certamente) e tenenti kornel (tenente coronel) – são específicos de Vure.
A Confraria local é composta por um presidenti, um procudor (procurador), um tesareru (tesoureiro), um sakriban (escrivão), um mestri I (mestre) e um mestri II, um kapela I e um kapela II, um cemador I (chamador) e um cemador II, e um sankrisan (sacristão).
À semelhança de Sica, também aqui é representada uma sandiwara (peça de teatro) pelo Natal.
Ultrapassada a timidez inicial, há quem ouse vir cumprimentar-me na varanda da casa do sacristão Domingos Carvalho, o único paroquiano que fala algum Inglês, e para onde naturalmente me conduzem depois de exibido o tesouro da aldeia.
Domingos, ou melhor Domi Karwayu, como ele próprio soletra, é um jovem franzino de poucas palavras. Tem um irmão missionário exactamente com o mesmo nome (como é habitual nestas paragens) que se encontra em Portugal para aprender «a nossa língua», para depois ir para Angola.
Lembrando-me do que ouvira dizer em Larantuca, pergunto-lhe se há alguém na aldeia que fale Português. Responde-me que não, embora admita que haja quem comunique num linguajar que ninguém entende. Uma dessas pessoas vive ali perto. Chama-se Lambertus Sakera, 66 anos, «nascido a 16 de Abril de 1939», e está retratado no livro do embaixador António Pinto da França, de quem se recorda perfeitamente. «Este sou eu», diz Lambertus, apontando para a fotografia que o mostra a transportar a cruz processional em prata que eu acabara de ver e que pelos vistos é a joia da coroa da regalia.
Lambertus, que ocupa hoje o cargo de “procudor” da Confraria, recorda-se ainda do discurso em Português corrompido que vem transcrito no livro de Pinto da França e de uma lengalenga da qual entendo algumas, pouquíssimas, palavras.
Outro dos habitantes retratado no livro “Portuguese Influence in Indonesia” é Paulus Fernandes, de 68 anos, de claros traços indianos, que não hesita em proferir as palavras em Português que ainda recorda: «braço, perna, governo, governadeira, mãe, misericórdia, rainha do céu, Nossa Senhora»… É comovente ver o esforço que faz para se lembrar. A mulher ao lado, encorajada pelo marido, canta uns versos de uma oração antiga em Português. Pelos vistos, a tradição oral ainda não se perdeu por completo em Vure.
Cumpridas as cerimónias religiosas, o Domingo de Páscoa é dia de aguardente e festa rija. Na casa em frente da do meu anfitrião a aparelhagem está no máximo. Ao som dos Mataraga, um agrupamento de Bajawa, desses que aliam aos tradicionais cavaquinhos e violinos a caixa de ritmos e o sintetizador, homens e mulheres dançam, de braços abertos, algo que se assemelha ao nosso vira. Quem assiste ao baile, arrumado em roupas domingueiras, ri-se despreocupadamente. Todos estão bem bebidos, em particular o senhor Rodrigues, o mais falador, que me dá a entender que à noite a festa vai ainda ser maior. Sou convidado, por isso, a pernoitar na casa dos Carvalhos, tendo sido para o efeito preparada uma cama no melhor dos quartos.
Joaquim Magalhães de Castro