Nossa Senhora de Fátima, radiografia de uma devoção
O agravamento da pandemia de Covid-19 em várias cidades da China levou a diocese de Macau a substituir novamente a tradicional procissão de Nossa Senhora de Fátima por um cortejo automóvel com destino à Ermida da Penha. A novena dedicada à Virgem do Rosário de Fátima começou a ser cumprida na última quarta-feira, na igreja de São Domingos. Os tempos são outros, mas a devoção permanece intacta, garantem os católicos ouvidos pel’O CLARIM.
Cerca de uma centena de fiéis participaram, ao final da tarde de quarta-feira, no arranque das celebrações da Novena e Festa de Nossa Senhora de Fátima. Tendo a igreja de São Domingos como palco, a iniciativa culmina na próxima sexta-feira com Missa Solene presidida pelo bispo D. Stephen Lee, seguindo-se a habitual peregrinação à Ermida da Penha, que este ano volta a ser realizada em cortejo automóvel, dado o agravamento da pandemia em várias cidades e regiões da China continental.
No primeiro dia da novena, os fiéis que se deslocaram à igreja de São Domingos para a recitação do Terço e para a Eucaristia rezaram pela conversão dos pecadores, pela paz do mundo e pelo fim da pandemia. Os três desígnios norteiam as intenções gerais de uma das manifestações de fé que, no entender do padre Luís Sequeira, melhor definem a expressão da religiosidade da comunidade católica de Macau. O sacerdote jesuíta, que foi durante um quarto de século o assistente eclesiástico da Congregação de Nossa Senhora de Fátima, considera que a relevância das celebrações do 13 de Maio supera, em muito, o significado que tem para a pequena comunidade católica do território. «Eu costumo dizer que as duas grandes celebrações da comunidade cristã em Macau são a celebração do Senhor dos Passos, no contexto depois da Semana Santa e da Quaresma, e a celebração da Festa de Nossa Senhora de Fátima», defende o antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. «O que vemos é que não só a comunidade cristã participa, como também pessoas não cristãs – ou, pelo menos, não muito ligadas à Igreja. Este aspecto, parece-me a mim, é relevante, inclusive como testemunho cristão para uma sociedade que, na sua grande maioria, não é cristã», sublinha o padre Luís Sequeira.
Nos anos que antecederam a pandemia de Covid-19, a procissão de Nossa Senhora de Fátima atraiu a Macau centenas de católicos, turistas e curiosos de países e regiões, como da vizinha Hong Kong, da Malásia ou de Singapura. A relevância do 13 de Maio e da devoção a Nossa Senhora do Rosário de Fátima levou a diocese de Macau, já sob a égide do bispo D. Stephen Lee, a chamar a si a responsabilidade pela organização da novena e da procissão. Para o padre Luís Sequeira, trata-se do reconhecimento da importância que a Igreja Católica no território atribui à devoção a Nossa Senhora de Fátima: «Em 2019, no Centenário das Aparições, o senhor bispo assume como inevitável que a própria Diocese tomasse a responsabilidade de manter esta prática e esta devoção, embora sempre com a ajuda da Congregação de Nossa Senhora de Fátima. Portanto, diria que de facto, desde o princípio, a adesão a esta celebração se manteve sempre como uma expressão muito clara de aceitação e de reconhecimento da devoção a Nossa Senhora de Fátima».
EXPRESSÃO MAIOR DE FÉ
A procissão de Nossa Senhora de Fátima foi realizada pela primeira vez em Macau, corria o ano 1929, por iniciativa do padre António Gonçalves Roliz. Um ano depois, em 1930, nova novidade: com a imagem da Virgem percorreu-se as ruas da cidade em peregrinação até à Ermida da Penha.
Ao longo das últimas nove décadas, a novena e a procissão de Nossa Senhora de Fátima tornaram-se, para muitos católicos locais, a expressão de maior envergadura da fé católica no território. Para Judith Antunes – na quarta-feira orientou a recitação do Terço na igreja de São Domingos –, nem o facto da pandemia de Covid-19 impedir a realização da procissão rouba magnitude à devoção que os católicos, em particular a comunidade macaense, sentem pela Virgem de Fátima. «Como ainda enfrentamos a ameaça da pandemia, não podemos ter a procissão. Mas vamos concentrar-nos lá em cima, na Penha, e vai ser feita a consagração a Nossa Senhora. Vamos fazer tudo conforme costumávamos fazer. Só não vamos ter a procissão. É a única coisa», explica a’O CLARIM. «Na Sé Catedral temos a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Foi doada por Portugal a Macau no dia 13 de Maio de 1943. Habitualmente, os católicos de Hong Kong também vinham a Macau para participar na procissão, bem como os católicos da China. O costume era que se concentrassem aqui pessoas de Macau, de Hong Kong e da China [continental]», recorda Judith Antunes, para quem o cumprimento integral da novena, mais do que um acto de fé, é uma obrigação.
Esta devoção é partilhada por Cíntia Badaraco, que faz questão de todos os anos participar na novena. Devota da Virgem, argumenta que o zelo e a dedicação é partilhado por toda a comunidade católica de Macau. «Todos os anos aqui venho. Desde há muitos anos que participo na novena e tenciono continuar a participar enquanto puder. Todos nós temos uma grande fé na Nossa Senhora de Fátima. Eu, pessoalmente, sou muito devota a Nossa Senhora de Fátima», garante, também em declarações ao nosso jornal. «Participo na novena e na procissão. Este ano não vamos ter a procissão de novo. Nossa Senhora de Fátima vai de carro até à Ermida da Penha e depois reza-se lá o Terço», acentua Cíntia Badaraco.
Expressão maior de fé por parte da comunidade católica, a procissão de Nossa Senhora de Fátima foi incluída pelo Governo de Macau na lista do património intangível do território. A par dos “benefícios” turísticos, a iniciativa trouxe uma nova visibilidade à celebração, um fenómeno que preocupa, quanto baste, o padre Luís Sequeira. «O aspecto turístico não me aflige por aí adiante. A procissão é uma expressão mais pública, mais aberta. Se fosse só uma manifestação meramente como espectáculo, já teria alguma dificuldade. O que eu espero é que não se perca a devoção profunda a Nossa Senhora como expressão também de uma fé suficientemente esclarecida e, de facto, transformadora da vida de cada um», sustenta, concluindo de seguida: «E é nesse sentido que a novena é importante, porque ajuda a comunidade cristã, durante nove dias, a ter um tempo de maior oração; tempo de maior penitência e de sacrifício, mas também de serviço. É algo que é mais íntimo, mais pessoal e mais espiritual. Os dois lados, penso eu, são complementares».
Marco Carvalho