A resistência dos Penan
Oval e com tecto de colmo, a moradia tradicional dos bidayuh – um dos ramos dos daiaques – tem por hábito arvorar uma estatueta de um calau protector. Era o caso da que visitei e onde se mantinha no seu posto, apesar do horário cumprido, um figurante da aldeia cultural. No caso, um velho artesão que da rude madeira materializava pífaros, utensílios de cozinha e estatuetas de Cristo e da Virgem Maria, pois, ao contrário de muitos dos seus pares, fora já cristianizado. Tendo em conta a sua provecta idade, aproveitei para lhe perguntar se havia na memória do seu povo alguma referência à passagem dos portugueses por aquelas paragens. O seu olhar, misto de espanto e interrogação, deu-me a resposta. Apenas duas lantacas (aqui, tal como na Indonésia, também se designam os canhões de “Meriam”, corruptela da palavra “Maria” que os soldados portugueses proferiam no calor da refrega) encostadas a dois dos quatro pilares que sustentavam o tecto da cabana, transportavam para ali reminiscências da época das extensas e conspícuas lusas navegações nos labirínticos mares da Insulíndia.
Nas imediações da cabana bidayuh deparei com um espremedor artesanal de cana de açúcar e uma ponte côncava toda ela feita de canas de bambu. Um letreiro desafiava o visitante a atravessá-la. Era, digamos assim, o momento radical ao dispor do visitante, pensado para aqueles que porventura pudessem sentir-se aborrecidos ao longo da deambulação pela aldeia cultural de Santubong.
Continuemos com a vistoria aos transladados domicílios dos povos do Bornéu, demorando-nos agora um pouco mais nas designadas casas longas dos orang ulus e dos iban. Bem mais elaboradas do que as habitações dos melanaus, também com um enorme pé alto e assente num multitude de toros implantados no solo, exibem à entrada figurinhas de madeira, a fazer lembrar os gnomos protectores dos jardins das casas do norte da Europa. O acesso ao alpendre – chão com talhes no madeira para evitar escorregadelas no musgo – faz-se por umas escadas escavados nos cilindros de lenho. Se bem que involuntária, eis a outra das “actividades radicais” da aldeia temática: subir escadas. Avistadas de longe, as pinturas a branco e castanho nos postes das casas longas dos orang ulus fazem lembrar as iluminuras nas portadas e páginas interiores dos livros da Idade Média. Cá fora, uma forja para as espadas dos orang ulus, conhecidos pelo seu apego aos utensílios de ferro.
Deixo para último, propositadamente, os primitivos e nómadas penan, conhecidos pela sua prática do “molong”, ou seja, nunca tiram mais do que precisam. Tão pouco transportam mais do que o necessário. Para eles, um simples tecto serve. Por tradição caçadores-colectores, viram a sua condição alterada com a chegada maciça de missionários anglicanos após a Segunda Guerra Mundial, que os incentivaram a uma vida sedentária nos distritos de Ulu-Baram e de Limbang. Alimentando-se de plantas (usadas também como medicamentos) e animais, os penan são o símbolo vivo da resistência humana contra a criminosa campanha em curso de desflorestação da selva do Bornéu.
Recordam-se de Bruno Manser, o activista ambiental suíço que na década de 1990 chamou a atenção para estes problemas? Manser viveu com os penan durante seis anos, tendo aprendendo o seu idioma, as técnicas de sobrevivência e os seus costumes. E fê-lo com tal empenho que os penan o aceitaram como um dos seus. Decidido a dar a conhecer ao mundo a causa dos indígenas, Manser escreveu uma carta ao Primeiro-Ministro Abdul Taib Mahmud e contactou os países importadores de madeira na Europa e no Japão, alertando-os para o desmatamento em curso e os consequentes problemas sociais. Para enfatizar esta sua acção de consciencialização pública, Manser desceu em parapente nos relvados da residência oficial de Abdul Taib Mahmud e fez uma greve de fome junto aos escritórios das companhias de navegação japonesas em Tóquio. Em 1990, em jeito de resposta, o Governo de Sarawak declarou Bruno Manser como “inimigo do Estado”, tendo enviado uma unidade do exército para encontrá-lo e capturá-lo. Recambiado para o seu país, Manser não baixou os braços. Fundou o Bruno Manser Fonds (BMF), organização sem fins lucrativos dedicada à causa do povo penan, e, dez anos depois, regressou a Sarawak, desta vez na companhia de um dos seus associados e de uma equipa cinematográfica sueca, para se voltar a reunir com os penan na selva mais profunda. O certo é que Manser desapareceu no decorrer dessa expedição e o seu corpo e pertences nunca foram encontrados, apesar das buscas feitas. Surgiram de imediato teorias de que teria sido assassinado a mando do Governo de Sarawak ou de alguma das empresas madeireiras, embora outros rumores apontassem para um possível suicídio (como resultado de anos de campanhas mal sucedidas) ou até que ele se tivesse perdido nas densas florestas em redor de Bukit Batu Lawi nas terras altas de Kelabit, perto da fronteira com Kalimantan, o que é pouco provável pois Manser viveu vários anos na região com os penan tendo, por isso, um conhecimento profundo do terreno. Cinco anos depois, Manser foi oficialmente declarado como “desaparecido” pelo tribunal civil de Basileia, na Suíça.
Joaquim Magalhães de Castro