Cartas do Bornéu – 25

O rajá branco

Na orla de Sarawak desembarcou, em 1839, o aventureiro inglês James Brooke, nascido trinta seis anos antes na antiga feitoria portuguesa de Bandel, nas margens do Hooghly, a norte de Calcutá. Essa figura viria mais tarde a inspirar personagens de alguns filmes e romances, entre os quais os consagrados Lord Jim, de Joseph Conrad, e Sandokan, o Tigre da Malásia, de Emilio Salgari. Não era a primeira vez que Brooke tentava a sorte – ou seja, negócios – no Oriente. Fizera-o antes, embora sem sucesso. Porém, uma inesperada herança de trinta mil libras obtida em 1833 proporcionar-lhe-ia o capital necessário para adquirir uma escuna de 142 toneladas, o Royalist, misto de barco a vapor e veleiro, ao qual logo o inglês incorporou umas quantas lantacas, transmutando-o em barco de guerra. Estava assim preparado para rumar de novo ao seu querido Oriente e dar caça aos piratas de sultanato de Solo, os temíveis ialolos (illalun), armados até aos dentes com lanças, espadas e kris, todos ao mesmo tempo, tendo como única protecção um simples escudo de carapaça de tartaruga. Como se constata, a pirataria tem pergaminhos por estas paragens…

Seria, porém, uma outra ocorrência histórica que catapultaria Brooke para a ribalta. Quando ali chegou, estava ao rubro uma rebelião conjunta de malaios e bidayuhs (tribo autóctone). Taxados forte e feio, ambos garimpavam o estanho – minério muito apetecido na Europa que o utilizava nos caracteres móveis das prensas e na indústria militar, como estilhaço. Incapaz de travar o caos provocado pelo descontentamento, o governador Penigaram Makhota não teve remédio senão aceitar – a contragosto, diga-se de passagem – a ajuda do seu rival Muda Hassaim, tio do sultão do Brunei e enviado por este para anular o alvoroço. Brooke, vendo ali uma oportunidade de ouro, prontamente ofereceu assistência militar a Hassaim, que a aceitou de bom grado. Pudera. Assim, matava dois coelhos com uma só cajadada: neutralizava os descontentes e afastava do cargo o rival, oferecendo ao forasteiro, em jeito de recompensa, o apetecido posto. Brooke viu-se assim senhor da região de Kuching e teve Makhota como seu inimigo político até ao exílio deste.

Três anos mais tarde, em 1841, após sucessivas campanhas anti-piráticas e um apoio militar mais explícito, desta feita ao próprio Brunei, Brooke iria mais longe ao conseguir obter o título de rajá de Sarawak, atestado pelo próprio sultão ao decidir recepcionar o inglês e comparsas na sua corte. Em 1846, James Brooke ali voltaria para assistir à assinatura de um tratado entre o sultanato de Brunei e uma delegação britânica no qual a ilha de Labuan era cedida à Grã-Bretanha. Tratou-se de um golpe de mestre da parte do agora intitulado “rajá branco”. Ao oferecer de mão beijada esse pedaço do Bornéu, Brooke, que aí estendia a sua autoridade como governador e comandante em chefe, evitava que a Coroa Britânica se imiscuísse no seu feudo, que doravante não pararia de crescer em extensão. Hoje em dia, Labuan, entidade administrativa situada entre o Brunei e Sabah, é, sobretudo, um conveniente offshore financeiro do “peixe graúdo” que extrai do fundo do oceano petróleo e gás.

Como bem se vê, de longe vem a estreita relação existente ainda hoje entre a Grã Bretanha e os sultões do Brunei.

A saga do jovem Brooke, inspirada pela leitura do livro “The Eastern Seas, Voyages”, relato das viagens feitas pelo autor, George Windsor Earl, entre 1832 e 1834, e dedicado ao português Doutor José D’Almeida, um dos fundadores da moderna Singapura, “cuja bondade e liberalidade são sobejamente reconhecidos pelos inúmeros viajantes que conheceram já a sua hospitalidade”, está hoje exposta no Forte Margarita, construído em 1879 com o intuito de proteger a cidade dos ataques piratas. Depois de nos relatar a história da polícia, imortaliza agora, com o alto patrocínio da Fundação Brooke, a memória de uma família que durante décadas reinou sobre um considerável quinhão da Grande Ilha.

À entrada, a foto de Brooke enquanto jovem e uma frase em jeito de mote: “pudesse eu levar o meu navio a lugares onde nenhuma quilha de navio europeu tenha antes as águas arado”. Aliás, ao longo de toda a exposição há uma série de sentenças, dele e do sucessor, Charles Brooke, que alegadamente atestam a boa relação que o clã sempre manteve com os locais, se bem que a obtenção do território tenha partido da velhinha fórmula dividir para reinar, como já se viu.

Se a expressão “sou um homem de uma só ideia: Bornéu; tudo o resto na vida é apenas um pouco de rapé a fazer-me comichão nas narinas, ou um som, ou uma pequena visão, um puro divertimento” me parece algo exagerado, já a dito “tenho o dever de trabalhar em prol do povo de Sarawak, porque, no fundo, sou o seu protector” fala por si. Brooke não fazia por menos, e até acredito que amasse genuinamente aquela terra. Não obstante, havia muita gente que não partilhava desse seu “altruísmo”, como o comprovam as diversas revoltas armadas que marcaram a sua governação. Uma delas, liderou-a o malaio Sharif Masahor; a outra, o orang ulu Libau Rentap, ambos inimigos declarados. Brooke teve ainda um outro oponente: o chinês Liu Shan Bang. Acusado do uso de força excessiva contra os nativos com o pretexto da perseguição aos piratas – acusação que, de resto, sempre negou – Brooke teve de dar explicações às autoridades britânicas de Singapura, mas seria ilibado.

Brooke nunca se casou (embora tivesse tido um filho legítimo) e claramente preferia a companhia dos homens à das mulheres. Manteve uma relação íntima com o príncipe local Badruddin, a respeito do qual dizia: “o meu amor por ele é mais profundo do que qualquer outro”. Esta confissão fez levantar a suspeita de que seria homossexual, ou pelo menos bissexual, presunção corroborada anos mais tarde por um assumido relacionamento do “rajá branco” com Charles Grant, neto de um nobre inglês com apenas dezasseis anos de idade.

Joaquim Magalhães de Castro

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