Carta de um Adulto ao Menino Jesus

Ou algumas reflexões perante o presépio.

Não me lembro há quantos anos não Te escrevo uma carta pelo Natal, Menino Jesus! Desde que deixei de ser criança, certamente, e de começar a duvidar do uso da chaminé para outros fins que não os mais óbvios.

Achei sempre, aliás, que as chaminés eram lugares impróprios para fazeres por elas descer o Teu mensageiro habitual, o Pai Natal, figura algo volumosa para evitar sujar, na descida, a sua fatiota escarlate. Ainda por cima carregado com o proverbial saco das prendas!

E um Pai Natal com o trajo conspurcado com a fuligem da descida não tem a dignidade de um Pai Natal como se vê nas fotografias!

Ou estou a trocar tudo e o Pai Natal viaja de trenó e és Tu, Menino Deus, com a leveza própria dos anjos, que desces por milagre no sapatinho ou na meia das crianças ansiosas pelo despertar do Grande Dia?

Não importa! Talvez por ser dado a devaneios poéticos – vá-se lá saber porquê! – se deixei de acreditar no milagre dos brinquedos depositados no sapatinho, não deixei nunca de ser sensível e mesmo maravilhado pela história do Teu nascimento e pela Tua missão no mundo.

Convenhamos que era uma missão suicida, como aliás se veio a provar! Porque isto de recriar o homem é tarefa para quem o… criou – e a muito custo! Perdão, Tu mesmo o criaste, quase me esquecia!

É que num estranho fenómeno que não vem narrado na Bíblia, os homens desde o início da sua caminhada na Terra que não se contentaram com ela. E, roubando as asas aos anjos, pretenderam conquistar os céus, e ainda por cima seguindo rotas proibidas.

Tudo começou com o nefasto episódio da maçã e depois foi o que se viu: transgressões atrás de transgressões que de tal modo Te desesperaram que um dia convocaste Noé, instruíste-o para fazer a barca e para nela pôr um exemplar de todos os animas criados e… enviaste o dilúvio!

Arrependeste-Te logo a seguir e juraste nunca mais destruir o homem e o resto da criação. E Tens cumprido.

Mas viste que o homem ciclicamente rouba as asas dos anjos e voa para céus proibidos, onde de facto se auto-destrói.

Tão desesperado ficaste com as loucuras dos humanos que mandaste profetas alertá-los. Em vão. Por fim vieste Tu, o Enviado do Pai, essa Primeira Pessoa duma Trindade que nos confunde e ao mesmo tempo nos fascina!

MENINO JESUS,

como vês, depois de tanto tempo sem Te escrever, eu tinha que começar esta carta sem Te pedir nada, excepto a Tua divina atenção para reiniciar a conversa contigo.

Tanto tempo passou e agora sou adulto, e mais que adulto, já no inverno da vida. As ilusões de menino já vão muito longe, e olhares de puro fascínio pelo contínuo milagre da vida só o vejo agora no olhar dos meus netos, prontos, por sua vez, para a grande aventura de irem ao Teu encontro.

Mas não escapas, se me permites a expressão, a que Te peça presentes, não exactamente brinquedos, mas coisas que os da minha idade mais apreciam. E a lista é longa…

MENINO JESUS,

bem sei que não posso compreender tudo da criação, pois o universo é vasto e os meus anos curtos. Mas em vez de fazeres o milagre de, numa noite destas, ordenares aos bibliotecários do céu que me soprem no cérebro o conteúdo de mil enciclopédias, alimentando a minha tentação de poder saber tudo, faz o milagre de me dares humildade.

Até me permito sugerir que seja uma espécie de milagre a prestações, lembrando-me a espaços regulares que não sei tudo, nunca saberei tudo – e que de qualquer modo isso é irrelevante no caminho que me traçaste para chegar a Ti.

Mas eu queria ainda outras coisas…

Por exemplo, queria pensar cada vez menos (para um dia destes deixar de pensar de todo) que o prestígio é muito importante, que cultivar relações por interesse é imperativo de sobrevivência, e que o mundo é muitíssimo mais vasto que o meu ego.

De todos os milagres que fizeste, e não falando já na ressurreição de Lázaro, e da cura dos leprosos, os vários casos em que dás a vista a cegos são para mim cheios de um simbolismo tão forte que me sacode e me impulsiona para Ti. E sabes porquê ? Claro que sabes!

É que há tantas formas de cegueira humana, social! Ou de miopia, que é a forma mais atenuada do mesmo mal espiritual, psicológico.

A cegueira de quem não vê nunca a gente mais humilde e só olha para os degraus acima da escada social, como quem pede ajuda para subir também.

A cegueira de quem não vê os outros, não elogia os outros, não lhes dá atenção nem palavras de estímulo, esperando ansiosamente, todavia, receber tudo isso, como beneficiário exclusivo!

A cegueira de quem não agradece o que a vida lhe deu, reclamando sempre por mais…

Outro presente que acrescento à minha lista é que me dês, nos dês, a graça de ser instrumento(s) da verdadeira paz.

O mundo está doente de violência, Jesus, desde as acções individuais até às próprias formas de organização da sociedade!

As relações entre as pessoas são violentas, as culturas e as nações têm sementes de violência – e o orgulho individual ou colectivo ainda piora mais a situação!

Os meninos pedem espingardas de plástico aos pais (talvez por engano Te peçam o mesmo, nas cartas que eventualmente ainda Te enviam) e isso é treino para usarem, como adultos, objectos com o mesmo aspecto, mas verdadeiros. Letais. Fatídicos.

O cinema é violento, a televisão é violenta. Porque, dizem os jornalistas não sem razão, a realidade é violenta.

O sentido da competição em que está alicerçada a nossa corrida desenfreada para o sucesso tem ínsita em si a violência para com os outros, o espezinhar dos mais fracos, o subir a qualquer preço…

O dinheiro, como sabes, continua a ser o grande motor das sociedades. O dinheiro de alguns poucos e sobretudo a ausência de dinheiro da maioria esmagadora!

Peço-Te que nos dês a liberdade de espírito para nos defendermos de tal obsessão que, sob a forma de corrupção e outros males, corrói as sociedades.

MENINO JESUS,

creio que terei de interromper esta carta que é afinal e tão só uma conversa contigo. Mas dentro em pouco chegar-Te-á um “post scriptum”.

É que conversar contigo ocupa toda uma vida… e eu agora tenho de ir comprar brinquedos para crianças mesmo pequenas – os meus netos.

Até já!

Carlos Frota 

 Universidade de São José

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