No final de 2024, O CLARIM publicou uma série de artigos sobre a Esperança. Depois, outra série sobre a Fé. Agora é a vez da Caridade, a terceira virtude teologal.
Como de costume, o tratamento da caridade será feito numa perspectiva moral/espiritual. A teologia moral clássica é também teologia espiritual: enquanto esta última sublinha a dimensão vertical – a relação com Deus –, a dimensão moral acentua a horizontal – a relação com a Humanidade e o Mundo.
O autor planeia desenvolver o amor divino numa série de artigos. Os dois primeiros artigos incidirão sobre a caridade como virtude e como virtude teologal.
A Teologia é um discurso da Fé e da Razão. Ela toma os princípios da revelação e tenta desdobrá-los e explicá-los de forma razoável. Os teólogos tentam fazer teologia contextualmente, dentro da sua situação religiosa, social e cultural: um mundo globalizado onde temos ricos e pobres, poderosos e impotentes, povos que consomem em excesso e povos que morrem de fome, um mundo desenvolvido e um mundo em desenvolvimento, um mundo que anseia por verdadeira justiça e amor a meio de conflitos, guerras, exclusão, marginalização e perseguição.
A teologia moral é a ciência ética – uma ciência normativa – que nos mostra as normas que nos guiam a viver como pessoas humanas e como filhos de Deus, e nos ajuda a ser felizes aqui e no além. Uma pessoa, um cristão, é moral se for boa e fizer coisas boas. A questão radical da ética e da ética cristã não é realmente o que devo exercer? Mas sim: o que – ou quem – devo ser? (Cornelius van der Poel). São Francisco afirmara, segundo Carlo Carretto: “O que conta não é fazer, mas amar” (cf. At., 2, 37; VS n.º 110). De facto, “ser é amar” (E. Mounier).
A teologia moral clássica é essencialmente uma teologia moral das virtudes – das virtudes teologais e das virtudes cardinais, incluindo os outros hábitos sobrenaturais, ou seja, os dons do Espírito Santo. Hoje em dia, assiste-se a um renascimento da categoria moral da virtude, também na bioética.
1. A CARIDADE ENTRE AS VIRTUDES
Li algures que o filósofo Spinoza terá dito que a virtude fascina e atrai – mais ainda as pessoas virtuosas. Para os cristãos, Jesus Cristo é “o modelo em quem todas as virtudes atingem a perfeição” (João Paulo II, in “Vita Consecrata”). A vida virtuosa de Cristo, o misericordioso, continua a fascinar e a atrair homens e mulheres de todos os tempos. Jesus é o modelo e o paradigma de todas as virtudes. Ele é a virtude total: “Aquele que tem olhos na sua Cabeça – por Cabeça entendemos a origem de todas as coisas – tem-nos fixos em toda a virtude – pois Cristo é a virtude total – na verdade, na justiça, na incorrupção e em tudo o que é bom” (São Gregório de Nissa).
Tradicionalmente, a virtude é definida simplesmente como um bom hábito operacional. Em geral, a virtude é um hábito, isto é, uma qualidade humana que dispõe firmemente as potências da pessoa humana para o bem ou para o mal. O hábito da compaixão, por exemplo, inclina a pessoa compassiva a realizar actos de amor ao próximo mais necessitado. A virtude é um hábito operacional: dispõe a pessoa a agir de maneira agradável, rápida e fácil. É, especificamente, um bom hábito operacional. A qualidade da bondade distingue as virtudes dos vícios: enquanto os bons hábitos operacionais estão em conformidade com a nossa natureza como seres humanos, os vícios, ou maus hábitos operacionais, são contrários à nossa humanidade.
A virtude é a categoria moral por excelência, o princípio interior dinâmico das boas acções humanas, uma inclinação firme que leva as pessoas a viver como “seres humanos florescentes”, um traço de carácter que “molda a nossa visão da vida, ajudando-nos a determinar não só quem somos, mas também o mundo que vemos”. Na verdade, “a virtude melhora a visão, enquanto o vício a escurece e, finalmente, a cega” (Gilbert C. Meilaender, “The Theory and Practice of Virtue”).
As virtudes são “sucessos na auto-realização”. As virtudes, como bem prova São Tomás, dão-nos conhecimento por conaturalidade, uma inteligência afectiva ou emocional, uma capacidade aguçada de julgar bem. As virtudes colocam ordem nas nossas vidas e harmonizam dinamicamente as nossas potências, traços e habilidades. A virtude é o cerne da ética e da ética cristã: “Qual é o propósito da ética?”, perguntou-se o teólogo Peter Kreeft, para responder: “É tornar as pessoas boas, isto é, virtuosas”. É seguir Cristo, o Virtuoso. O nosso principal problema não são os nossos pecados, mas a nossa falta de virtudes – de amor (Peter Kreeft, “Back to Virtue”).
Existem diferentes tipos de virtudes, que geralmente são divididas em virtudes teológicas (fé, esperança e caridade) e virtudes morais/cardinais (prudência, justiça, fortaleza e temperança). Também falamos de virtudes intelectuais (compreensão, ciência, sabedoria, arte e prudência; estas não são virtudes propriamente ditas – excepto a prudência, que também é uma virtude moral). Outra distinção básica das virtudes é aquela baseada na sua origem: virtudes adquiridas – adquiridas através da repetição de actos; e virtudes infundidas, que são concedidas por Deus com a graça e os dons do Espírito Santo, que aperfeiçoam as virtudes teológicas e morais.
As virtudes são muitas. São Tomás menciona mais de cinquenta. Na ética aristotélica e na ética cristã, todas as virtudes morais humanas são estudadas sob as quatro virtudes cardinais. Para o Doutor Angélico, um verdadeiro cristão é aquele que possui as sete virtudes principais, a saber, as três virtudes teológicas e as quatro virtudes cardinais. Entre todas as virtudes, a humildade ocupa um lugar de honra, porque a humildade é uma qualidade de todas as virtudes. Assim, de uma perspectiva cristã, a virtude da humildade, ligada à temperança, recebe uma importância radical.
De facto, a virtude fascina. Uma vida virtuosa é uma vida feliz, e quanto mais virtuosa, mais feliz. Felicidade relativa? Sim, mas verdadeira felicidade limitada: a única possível nesta vida terrena. Além disso, o caminho das virtudes é o caminho para o céu – para a felicidade plena.
A questão fundamental: como praticar a virtude? Uma resposta: basta praticar uma boa acção num determinado campo moral e repeti-la frequentemente. Samuel Smiles expressa correctamente esta ideia no seu conhecido e encantador poema:
Plante um pensamento e colherá uma acção.
Plante uma acção e colherá um hábito.
Plante um hábito e colherá um carácter.
Plante um carácter e colherá um destino.
Pe. Fausto Gomez, OP