Cajado de viajantes pobres e doentes
Para quem nasceu e foi criado na zona centro de Portugal, mais concretamente na faixa litoral a que se tende chamar Bairrada, circular entre Coimbra, a capital do distrito, e Aveiro, a capital do distrito vizinho que dizem já ser norte, é normal e algo a que ninguém aponta grande importância.
O trajecto da Estrada Nacional 109, por mim conhecida desde os meus primeiros dias de vida, visto que foi na beira desta que o negócio de família sempre floriu, entre Mira e Aveiro, era costumeiro. Primeiro, quando ainda nem carro tínhamos, era feito de motorizada – conduzida pelo pai ou mãe –; mais tarde, no início dos anos 80, já o fazíamos de carro e mais frequentemente, devido à maior facilidade de deslocação. Ora para irmos às compras, ora para irmos à Feira de Março, que nessa época ainda era a “Feira de Março” – o maior evento que trazia pessoas de Portugal inteiro à cidade das varinas.
Assim sendo, perdi conta às vezes que percorri o trajecto, de pouco mais de vinte quilómetros, entre a minha terra natal e Aveiro. Daí que também não consiga saber quantas vezes passei pela Capela da Misericórdia em Vagos sem nunca a ter notado. Está mesmo ao lado da estrada, no meio da vila, meia escondida entre os inúmeros prédios que fazem parte do aglomerado urbano de Vagos.
Se consigo entender que durante a infância e a juventude ali passei muitas vezes sem olhar para os lados, já na idade adulta tal torna-se menos compreensível. A verdade é que por incrível que pareça apenas há pouco tempo dei conta da dita capela. E só aconteceu porque hoje, no troço da Estrada Nacional 109 em frente da mesma, plantaram um semáforo que obriga a que abrandemos a marcha. Assim, somos obrigados a parar e esperar pelo sinal verde, tal tem sido o aumento do tráfego automóvel nesta vila satélite da capital do distrito de Aveiro.
Foi há dias, já de noite, ainda antes do Natal, que vínhamos para casa depois de termos encerrado o nosso novo restaurante em Aveiro. Estavam alguns carros à nossa frente e o semáforo passou a vermelho. Foi então que ficámos parados mesmo ao lado da Capela da Misericórdia que nesse dia estava com as luzes acesas no seu interior e com a fachada iluminada. Não sei se estava a ser celebrada alguma data especial ou a ser realizado um evento solene pelo Natal. Nunca mais a vi aberta e sempre que ali passamos, no mínimo duas vezes ao dia, olho para o singelo templo cuja fachada está sempre iluminada à noite.
Pouca informação existe sobre a mesma e a disponibilizada pelo Município de Vagos, na sua página oficial da Internet, pouco satisfaz a quem procura saber pormenores da história da Capela. Ainda assim, num curto texto, a página refere que “os primeiros estatutos conhecidos da Misericórdia em Vagos datam de 1694”, sendo que “nesta data existiam uma capela da Misericórdia com irmandade, e na capela uma imagem de Nossa Senhora da Misericórdia”. E acrescenta: “o culto da irmandade era feito ao Senhor dos Passos, realizando-se no quinto Domingo da Quaresma uma procissão dos Passos com acompanhamento musical. No século XIX existiam ainda edifícios adstritos à Misericórdia, como uma albergaria onde poderá ter havido uma roda de expostos e dois celeiros, um mais antigo que o outro. Neste século foram demolidos para edificar a actual capela. Os modernos estatutos da irmandade da Misericórdia datam de 1876, continuando a haver uma irmandade do Senhor dos Passos ligada à capela com o mesmo nome”.
Segundo conseguimos apurar junto de pessoas que conhecemos em Vagos, a origem da Capela está ligada a uma Confraria das Almas que sustentava um antigo e muito rudimentar hospital, chamado São Tiago, onde se albergavam os itinerantes pobres e doentes. Mais tarde, foi construída uma capela maior, a que foi dado o título de Nossa Senhora da Misericórdia, reformando-se a irmandade com o nome de Senhor dos Passos.
Em termos arquitectónicos, o edifício não tem grande relevância. É relativamente estreito e de projecção vertical; ostenta um portal de volta perfeita, com um frontão côncavo que apresenta uma forma circular no topo. Acima do portal está uma janela com vitral, sobre o qual se encontra uma representação de Nossa Senhora da Misericórdia, junto ao vértice da fachada triangular. No topo do corpo da Capela está uma torre sineira, encimada por coruchéu, com janelas laterais que permitem a iluminação do templo.
Por ainda não termos tido a oportunidade de a visitar, recorremos a fotografias disponíveis na referida página da Internet do Município de Vagos, onde podemos constatar que a nave da Capela inclui um friso de azulejos com cenas da Paixão de Cristo que conferem continuidade artística ao altar da capela-mor. Esta última ostenta um painel de azulejos com a representação de Jesus Cristo, enquadrado num nicho do retábulo em talha policromada.
Todos os anos, em Abril, realiza-se uma procissão algo peculiar. Dentro da Capela encontram-se as imagens de Nosso Senhor dos Passos e de Nossa Senhora da Soledade. Primeiro, sai a imagem de Nossa Senhora da Soledade, em procissão, até à Igreja Matriz de Vagos, e no dia seguinte sai uma segunda procissão com a imagem de Nosso Senhor dos Passos. É então que as duas imagens se encontram no Largo do Encontro (passe a redundância), para depois seguirem juntas até à Igreja Matriz, havendo lugar a uma cerimónia religiosa. No final, as duas imagens regressam à Capela da Misericórdia, onde ficam até ao ano seguinte.
João Santos Gomes