Caminhos do Brasil

Reciprocidade no futuro

George Brassens acreditava que a mulher era o futuro do homem. E eu acredito (para além de subscrever, como é óbvio, e com todas as letras, a máxima do trovador gaulês) que o Brasil é o futuro da língua portuguesa, e, por consequência, o futuro do Portugal universal. Do Portugal pessoano, camoniano, vieiriano e agostiniano. Do Portugal que olha para além do seu umbigo, e, só por isso, tem razão de ser. Do Portugal de Teixeira de Pascoaes que busca em si as suas próprias qualidades para com elas se aperfeiçoar em vez de tentar importar qualidades de outros povos, como parece ser a actual tendência. Do Portugal que, qual Hércules, sabe estar com um pé na Europa e outro no mundo onde esgotou a sua veia e dinâmica. É tempo de voltar a resgatar o que por lá ficou, desta feita não com sentido de posse mas sim de partilha.

Embora aí, pois, com o exorcismo! Exorcizemos os lugares comuns, aparentemente inofensivos, que não só agridem – diz o povo e bem que “quem não sente não é filho de boa gente” – como impedem a progressão do verdadeiro conhecimento que leva ao encontro com o Outro.

 

O CASTIGO DO CEGO

Primeiro deve o português explicar ao brasileiro que o nome Joaquim, infelizmente, já não é muito comum em Portugal. E se calhar sempre foi mais utilizado no Novo Mundo do que na metrópole. Algumas das figuras ilustres do Brasil tinham essa designação, a começar pelo herói da Inconfidência Mineira, José Joaquim da Silva Xavier, conhecido como Tiradentes, pois cirurgião era a sua profissão.

Depois, sempre que lhe atirarem à cara com a já rançosa acusação de que fomos nós que levamos as riquezas do Brasil (o que não é verdade, pois a maior parte do ouro foi parar a mãos inglesas, o falso aliado de sempre), convém recordar-lhes que os sobrenomes da esmagadora maioria dos brasileiros são portugueses, o que faz dos antepassados deles – que começaram por se chamar paulistas – os verdadeiros “usurpadores” das riquezas do Brasil. Isto, se quisermos continuar a chover no molhado, em vez de concretizar as pontes de aproximação ainda por construir. Poupem o desgraçado do visitante que tem de levar com esta atoarda de quando em vez, se bem que já esteja vacinado. Este é, por exemplo, o argumento utilizado por uma amiga diplomata sempre que se desloca ao Brasil e a colocam perante a tão batida questão do “ouro roubado”.

O caso só mudaria de figura se o dedo acusador fosse índio ou negro, o que raramente acontece. Quem vem com bafientos inventos desses são geralmente indivíduos de raça branca, representativos da classe média, que apesar de se armarem em paladinos da defesa dos povos indígenas, jamais admitem – nem em sonhos – abdicar do seu modo de vida tipicamente ocidental. Então senhores, alguma coerência!

Em 2000, por ocasião das celebrações dos 500 anos do Achamento do Brasil, em entrevista ao diário Público o índio do Estado do Maranhão, Gavião Tunkô, aliás, António Ferreira, do alto da sua sapiência ameríndia, e perante a questão se Jorge Sampaio, à semelhança do que fizera o Papa, deveria pedir perdão por aquilo que os portugueses fizeram no Brasil, respondeu da seguinte maneira: «Olha, isso vai do sentimento e da cabeça de cada um. Vamos por partes: Jorge Sampaio estava lá em 1500? Não, não estava». Mais adiante, alertava para a actual situação do índio no Brasil «que está morrendo», lembrando que «não é o português que o está matando, não – é o fazendeiro e os mineradores». A efeméride foi, aliás, pródiga em troca de galhardetes pouco fraternos, entre um lado e o outro do Atlântico. No seu espaço semanal “Avenida da Liberdade” o cronista do Diário de Notícias António Valdemar chamava-nos a atenção para a retórica que mina as relações entre Portugal e o Brasil, malgrado a ideia de cordialidade e pretensa solidariedade entre dois povos irmãos que os canais diplomáticos tentam fazer passar. A monumental barraca das recentes comemorações dos 500 anos de Achamento em Porto Seguro e na Baía tinham sido disso bom exemplo.

Escrevia o articulista que «Darci Ribeiro, no ensaio de interpretação histórica, sociológica e antropológica O Povo Brasileiro, logo na primeira página, chama-nos “o povo invasor” e até ao fim do livro vai num crescendo que põe de rastos toda a acção portuguesa exercida nos trópicos».

Também o músico e cantor Caetano Veloso disse o pior de Portugal e dos portugueses, falando em «povo sugador de sangue de índio», mas não recusou o convite (pago certamente a peso de ouro) para actuar num espectáculo integrado nas comemorações dos 500 anos!

Uma das entre muitas acusações feitas então aos portugueses no Brasil era a da sua responsabilidade na destruição da floresta amazónica. Uma enormidade prontamente desmascarada, e muito bem, pelo historiador Romero de Magalhães, numa entrevista concedida ao jornal A Folha de São Paulo. O então presidente da Comissão dos Descobrimentos lembrou que o problema da desflorestação da Amazónia só se pôs com «o advento das serras eléctricas» e a possibilidade de devastar áreas inteiras de vegetação em poucos meses. Ora, na época em que esse desenvolvimento tecnológico se processou, o Brasil era já um Estado soberano e independente.

Tem as costas largas a lusa gente em terras de Vera Cruz! Enfim, mais um caso em que alguns sectores fundamentalistas da sociedade local procuram na História os bodes expiatórios que expliquem o subdesenvolvimento do Brasil, há cinquenta anos apontado como uma das grandes potências do final do século XX. Não o foi então, mas certamente será em meados do século XXI.

 

APROXIMAÇÃO, PRECISA-SE!

Uma sondagem realizada pela Datafolha, do Rio do Janeiro, revelava na altura o que em Portugal todos já sabíamos. Quase 50 por cento dos brasileiros questionados foram incapazes de encontrar o nome de um português que se tivesse destacado nos campos da política, poesia, música, literatura, desporto ou no mundo dos espectáculos. Cerca de quinze por cento dos inquiridos indicaram Roberto Leal, nove por cento apontaram o nome de Pedro Álvares Cabral e quatro por cento lembraram-se de Camões. O resultado da sondagem não podia ter sido mais avassalador. Uma década depois, malgrado a maciça presença de cidadãos brasileiros em território nacional e os fortes investimentos portugueses no Brasil, o panorama não se alterara significativamente. Se bem que, no Bravo On Line, Saramago fora escolhido com um dos escritores de maior destaque em 2008 pelos críticos brasileiros, graças ao seu último livro “Viagem do Elefante”. Entre as impressões escritas sobre a obra do escritor, destaco esta: «Saramago é incomparável, de olhar sereno e escrita provocante».

Entre os quatro críticos encarregados de escolher três escritores estrangeiros, Saramago fora opção para três deles; e havia um outro português, Gonçalo M. Tavares, que com o seu “O Senhor Walser” conseguira entrar na lista de Adriano Lisboa, o quarto desses críticos literários.

Sei que nos acusam frequentemente de sermos ignorantes. E se somos ignorantes no que a muitas coisas do mundo diz respeito, no que se refere ao conhecimento do Brasil marcamos alguns pontos.

Infelizmente nas relações entre Portugal e o Brasil o princípio de reciprocidade não se aplica. E não se entende bem porque não. Se em Portugal não há arraial de aldeia, programa de televisão, que se digne que não conte com um ou vários músicos brasileiros, no Brasil a música portuguesa é simplesmente barrada do mercado local.

Se em Portugal os jornais e as revistas referem o Brasil frequentemente, as referências que ali fazem de nós são escassíssimas.

Tudo indica que hoje tudo o que se conhece do português retrata-se em Roberto Leal, que recebe convidados e canta os seus “fados” num programa semanal.

A propósito de dois fiascos das nossas actividades internacionais, não resisto em transcrever algumas das passagens de Joaquim Letria impressas no já extinto 24 Horas. «Temos razões para pensarmos que os brasileiros e timorenses são uns ingratos». Pois, segundo Letria, «escondem-se em casa ou mordem a mão que os alimentou sem mostrarem uma partícula daquela gratidão que os portugueses tanto exteriorizaram por um torrão de açúcar de rendimento mínimo».

Para concluir, não resiste em transcrever que «nativo bom, generoso, sem rancor, alegre, dócil, agradecido e apreciador de missanga, só o português. Lástima que o venerando Chefe de Estado e o Presidente do Conselho tivessem de ir tão longe fazer tão triste figura em nosso nome. Gastaram uma pipa de massa que seria melhor empregue em qualquer coisa de jeito para os nativos. Os de lá ou os de cá».

Não sei se isto se passa com os espanhóis na restante América Latina, com os ingleses nos Estados Unidos, ou com os franceses no Canadá, mas a verdade é que chega uma altura que nem com o mais apurado sentido de humor lá vamos. Considero que todo este assunto é, sobretudo, uma grande perda de tempo, piada de mau gosto.

Reparo que sempre que tento falar destes assuntos (que na minha opinião não deveriam ser encarados de ânimo leve, pois são muito reveladores das fragilidades do universo lusófono), o brasileiro comum muda de assunto ou arranja uma forma de dar a impressão que não está nem ali, não fosse ele americano adoptivo, espécimen que prefere encarar as coisas pela rama e leva tudo numa boa, no que isso tem de positivo e de negativo. Nós, europeus, aprofundamos as raízes, às vezes em demasia, é certo, e com isso corremos o risco de sermos rotulados de chatos. Que seja. Somos chatos, macambúzios, cismados. E depois? Será que virá mal ao mundo por sermos assim?

Joaquim Magalhães de Castro

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