Punakha e o fácies ocidental do ministro
Fugido à perseguição religiosa no Tibete, no século XVII, o rei Ngawang Namgyel (esse o verdadeiro nome de Shabdrung Rinpoche, literalmente, “aquele a cujos pés todos se prostram”) teve o mérito de criar um país unificado e com identidade distinta a partir daquilo que era até então uma manta de retalhos de pequenos feudos em guerra.
O que pode ser designado como segunda fase do programa de Shabdrung para governar o Butão começaria com o período de construção dos mosteiros-fortalezas de que falávamos numa das últimas edições, iniciado em Simtokha em 1629 e concluído em Lingzhi e Gasa por volta de 1646. A razão deste estratagema era uma só: resistir às forças invasoras do Tibete. Resultou em pleno. Nenhum exército tibetano ou mongol conseguiu pôr pé no Butão durante a vida de Shabdrung ou dos seus imediatos sucessores.
A fortaleza monástica de Pungthang Dechen Phodrang (“Palácio da Grande Felicidade”), centro administrativo do distrito de Punakha, foi construída entre 1637 e 1638, a mando de Shabdrung, para impedir a invasão tibetana, constituindo-se no processo capital do reino, sucedendo nessa função a Paro. Seria construída posteriormente uma capela comemorativa da vitória sobre os tibetanos, em 1639, onde se guardam os braços dos inimigos capturados na batalha. Punakha manter-se-ia como capital do Butão e sede do Governo até 1955 e é hoje a residência de Inverno dos mais altos dignitários do lamaísmo local. A sua construção fora profetizada pelo guru Rinpoche. Previu esse afamado santo que “uma pessoa chamada Namgyel ia chegar a uma colina que se assemelha a um elefante”. Na verdade, quando Shabdrung visitou Punakha determinou que num promontório das proximidades, que fazia lembrar o dorso de um paquiderme, fosse construída uma fortaleza. Assim se fez, na confluência dos rios Mochu e Phochu, cujas águas de diferentes tonalidades simbolizam a co-existência do masculino e do feminino. Hoje, além de acolher um festival anual – o Tshechu – serve de sede administrativa do distrito de Gasa e contém o maior corpo monástico do reino. Um edifício menor, o Dzong Chug, abriga uma estátua de Buda datada de 1326. A vértebra (ou osso de uma perna) venerada – ao qual o padre Cacela faz referência na sua “Relação”, como vimos na semana passada – pertencia, na verdade, a Tsangpa Gyaré (1161-1211) fundador da escola Drukpa e remoto, embora directo, antepassado e mestre espiritual de Shabdrung. Essa relíquia encontra-se guardada no mosteiro de Punakha, onde também estão os restos mortais de Shabdrung, falecido em 1651, pois foi aí que o monarca passou a residir após se ter retirado da vida pública. Temendo a desagregação do reino, os regentes que então governavam o País mantiveram em segredo a notícia da sua morte durante doze anos.
Algures entre a conclusão do mosteiro de Punakha e o retiro final do Shabdrung, foi estabelecida uma nova forma de comunicação entre o poder e o povo: a inscrição de mensagens públicas em pedra. A inscrição em ardósia com código da “lei escrita de Shabdrung” é um monumento único que permanece quase intacto há mais de 350 anos. Ao contrário do Tsayig Chenmo, o código de comportamento prescrito aos monges que viviam em mosteiros, o código Shabdrung almejava divulgar publicamente as regras de comportamento impostas aos ministros do Estado e seus representantes. A inscrição contém evidências claras de ter sido ditada pelo próprio monarca. No preâmbulo, o autor afirma claramente que “Eu, o Glorioso Drukpa Rinpoche, o Dharmaraja, Aquele que é Possuído pelo Poder Mágico, Destruidor de Forças Inimigas, erigi isso de minha própria intenção”. Todos esses documentos legais presumiam a aplicabilidade universal do Budismo e os seus ensinamentos morais, promovendo assim a lei e a ordem e constituíam uma declaração clara para leitura dos cidadãos de como a governança sob o chamado sistema “duplo” deveria acontecer.
Visitamos Punakha, por mero acaso, numa data auspiciosa. Celebrava-se nesse dia o nascimento do segundo filho da bela Jetsun Pema, a mais jovem rainha do mundo que merece de Jigme Khesar Namgyal, o “oxforcizado” e antigo piloto da força aérea, actual representante da Casa de Wangchuck, toda a dedicação, já que renunciou o direito de ter múltiplas esposas, prometendo a Pema ser ela “a única mulher com quem se casaria”. Como convidados de honra eram aguardados o príncipe William e a então namorada Kate, daí as excepcionais medidas de segurança. Vemos passar por nós vários guarda-costas locais de saiote tradicional e meias até aos joelhos com uma arma enfiada no regaço e auricular nos ouvidos e, no meio deles, um indivíduo com um fácies nitidamente ocidental. Informa-me de imediato o guia Sangay que se trata de Lyonpo Dina Nath Dhungyel, ministro da Informação e Comunicações. Incrível! O homem nada tem de asiático. Em boa verdade, dir-se-ia até um português de gema. Não é de todo improvável que possa lhe correr nas veias sangue luso, pois na sequência da passagem dos padres Cacela e Cabral, e uma vez aberto essa rota para o Tibete, comerciantes portugueses estabelecidos em Bengala houve que passaram a frequentar o Butão e ali se instalassem, constituindo família alguns deles. Se considerarmos que tais anónimos não deixavam relatos escritos, pouco ou nada se sabe da sua existência. Além disso, terá havido certamente conversões ao Budismo e ao Hinduísmo, como houvera antes, na Índia dos mogóis, ao Islão, casos frequentemente referenciados pelos cronistas coevos que atribuíam aos ditos o epitáfio de “renegados”.
Joaquim Magalhães de Castro