Bengala e o Reino do Dragão – 3

A pacata e lusitana Hugli

Se tiver como referência uma qualquer cidade indiana escolhida ao acaso, e pelo menos no que toca ao troço de estrada que percorremos até Hugli, cristalizado pela imagem de pescadores em busca de equilíbrio em periclitantes embarcações ou mergulhados a meio corpo em vastas áreas alagadas, o trânsito pareceu-me bastante civilizado. Primeira surpresa: a ruralidade de uma cidadezinha que eu julgava completamente engolida pela grande metrópole de Calcutá. Felizmente assim não acontece. O que confere a Hugli um estatuto de quase aldeia, pacata aldeia diria até, não fosse o agregado de pessoas, bicicletas e riquexós. Chega-nos, vindo não se sabe bem de onde, o característico trinado de flautas e cítaras e o odor a incenso. Inconfundíveis, um e outro. Segunda impressão: as casas de inspiração lusitana, persianas de madeira e varandins. Uma delas tem mais de trezentos anos, dizem, casa apalaçada com pátio interior, muito degradada e com grafitos a ajudar. Tudo isto intervalado com edifícios de óbvia traça mogol. A quatro quilómetros de Bandel – o bairro histórico de Hugli, por assim dizer – é este o panorama: ruas tortuosas, estudantes com t-shirts “I love clean body, clean mind, clean school”, e a sensação de se estar perante um insistente circo eleitoral, tal é a variedade de cartazes com diversos e coloridos logótipos. Comparados com os exuberantes congéneres do Bangladesh, os riquexós de Bengala são bem modestos. Já as constantes apitadelas, essas, num e noutro local, pedem meças.

Uma vez instalados os mercadores, na remota centúria de Quinhentos, era apenas natural que a eles se juntassem os missionários, obreiros do plano espiritual. Que seria assegurado, numa fase inicial, pelos agostinhos, na altura o maior grupo religioso sedeado em Goa. A Bandel (significa porto) demandaram os monges em 1599, tendo imediatamente posto mão-à-obra com a construção de um convento que consagraram a São Nicolau de Tolentino. Chegaram pouco depois os jesuítas, logo edificando residência e um hospital. Uns e outros, rivais desde a primeira hora, disputariam a primazia na evangelização de Bengala, alheios, contudo, aos tempos nebulosos que, com todo o vagar mas de passo acertado, se aproximavam.

Cansado das sucessivas conversões para o Cristianismo de muitos dos seus súbditos, o novo imperador mogol, Shah Jahan, começou por, em 1629, proibir a entrada e residência de mais estrangeiros e, em 1632, impôs um cerco a Hugli. Durante esse período de resistência – do qual seria testemunha ocular o padre João Cabral, entretanto regressado do Tibete Ocidental, onde deixou residência, após ter cruzado o reino do Nepal, sendo assim o primeiro ocidental a percorrer tais paragens – os portugueses decidiram incendiar o convento agostiniano, pois temiam que pudesse vir a ser utilizado, como posto avançado, pelas forças invasoras. Assim, e após 192 anos de permanência e domínio, mercadores e proselitistas portugueses viam-se desprovidos do seu papel privilegiado em Bengala. Mas não por muito tempo, como adiante veremos. Na condição de prisioneiros, os padres foram levados para Deli com sentença de morte, destinados a ser “esmagados por elefantes”. No entanto – certamente com receio de futuras represálias por parte das autoridades portuguesas de Goa – o imperador Shah Jahan acabou não só por ordenar a libertação dos sacerdotes como até lhes concedeu um pedaço de terra na margem do rio Hooghly (daí o termo Hugli), precisamente em Bandel.

Mais tarde, em 1660, o filho de Shah Jahan, o imperador Aurangzeb, autorizaria a reconstrução da igreja, onde uma muito venerada estátua da Virgem Maria – caída ao rio aquando da precipitada fuga, e mais tarde resgatada do seu leito pelos cristãos remanescentes – voltaria a ocupar um lugar condigno e ainda hoje recebe peregrinos. Talvez por isso tenha a igreja sido apodada com o nome Nossa Senhora do Rosário. Consta que o templo original foi erguido em 1640 por um tal Gomes de Soto nas imediações ou até mesmo sobre as ruínas do anterior convento dos agostinhos, do qual resta uma simples pedra fundamental, junto ao portão leste, onde é visível um “1599”, data da sua construção. A igreja de Bandel, como também é conhecida, sofreria obras de alargamento em 1676, treze anos depois dos jesuítas edificarem na feitoria mais um dos seus já afamados colégios. A 25 de Novembro de 1988, após o acrescento de mais três altares, várias lápides e um órgão, este templo, dedicado também à Nossa Senhora dos Navegantes, seria declarado, aquando da visita à Índia do Papa João Paulo II, “basílica menor”. É, actualmente, porventura, o sinal mais óbvio da nossa passagem por terras de Bengala. Os católicos locais, muitos deles luso-descendentes, jamais permitiriam que ali residissem heréticos, ou seja, protestantes, e ainda hoje guardam e celebram as mais genuínas tradições católicas. De resto, partilhadas por pessoas de outros credos, que as integram aos seus milenares hábitos hindus.

Joaquim Magalhães de Castro

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