Bengala e o Reino do Dragão – 21

O trono e o milagre no rio

Sangay leva-nos directamente ao mosteiro local, após décadas de incúria, há bem pouco tempo reabilitado. Seriamente esventrado por um terramoto ocorrido em 1978, como as fendas nas paredes de uma stupa anexa sobrevivente o comprovam, esteve todos estes anos em eminente perigo de derrocada, pondo em causa a segurança das crianças de uma escola ali perto que do terreno anexo faziam o seu campo da bola. Visitaram Chapcha entretanto alguns investigadores – «duas japonesas e dois sujeitos de uma outra nacionalidade, não me recordo qual» – e, em 1988, nesga de esperança despontaria com o interesse manifestado por Pierre Richard, representante em Pondicherry da prestigiada Escola Francesa do Extremo Oriente, que em Chapcha levou a cabo um estudo e sem sucesso tentou obter fundos do Eliseu para uma reabilitação que só chegaria já na segunda década do século XXI. Isto, após uma derrocada ter magoado seriamente um dos colegiais. Ou seja, quase que estreamos a nova gompa, onde no futuro será, talvez, instalado um museu. Apressada busca na Internet prenda-me com uma única foto do edifício original, estampada num antigo selo com o valor nominal de 50 chetrums. Isto é, metade da unidade do ngultrum, a moeda corrente no País, incambiável noutro local ou por qualquer outro numerário.

Atentemos ao relato da chegada dos padres à localidade: “Partidos desta aldeia a cabo de seis jornadas sempre por serras chegamos a uma outra maior que se chama Rintam, onde achamos a prima casa deste Rei com gente sua que nos agasalhou”.

Sangay chama-nos a atenção (surpresa que tinha guardada na manga) para um pequeno amontoado de lajes de xisto que passa despercebido ao olhar de um leigo. Os locais chamam-lhe “trono de Shabdrung”. Para o guia, esse é um inequívoco sinal da presença da real figura na aldeola. «Foi aqui que Shabdrung recebeu os jesuítas portugueses», afirma a pés juntos. O butanês menciona inclusive as tendas que para eles foram montadas, como conta Cacela, referindo-se, contudo, a um local bem mais a leste, perto de Thimphu. Terá sido também aqui – de acordo com a versão de Sangay – que Shabdrung lhes prometeu a construção de uma igreja que, pelos vistos, nunca chegou a ser concretizada.

«Recordam os antigos» – continua Sangay – «ter sido este no passado importante local de culto e residência temporária para os líderes religiosos». Tida em conta esta afirmação, assim como o carácter itinerante da corte do monarca butanês, consigo compreender a associação do trono a Shabdrung. Por Chapcha terá o rei passado, mas não quando se acoitaram ali os jesuítas.

No decorrer da nossa conversa, Sangay, trazendo de novo à baila o episódio do roubo dos padres, conta-nos uma extraordinária estória. Após o assalto, os ladrões ter-lhes-iam atado os pés e as mãos, atirando-os depois ao rio. Porém, em vez de seguirem a corrente, como era natural, os seus corpos boiaram no sentido da nascente, prova não só da sua inocência como até de uma possível santidade. Ao ouvi-la, de imediato estabeleço um paralelo com a estória dos frades agostinhos de Hugli levados para Agra como prisioneiros dos mogóis após o cerco a Hugli. Consta que os elefantes seus carrascos ao invés de os esmagar, como era suposto, aninharam-se, dóceis, a seus pés. Confrontado com o facto, Shah Jahan não só lhes poupou a vida, como permitiu que regressassem à antiga feitoria portuguesa e reedificassem a igreja outrora ali existente.

Para Sangay terá sido o episódio do rio – um verdadeiro milagre, no entender dos católicos, se os houvesse no Butão, o que não é o caso – que levou Shabdrung a acreditar no carácter excepcional daqueles estrangeiros. Daí as ordens para que fossem tratados convenientemente. Ainda segundo Sangay, os padres permaneceram em Chapcha doze dias, «até à chegada do rei». Ora, essa hipótese parece-me, de todo, inverosímil. Um rei, mesmo sendo simultaneamente monge, nunca se deslocaria ao encontro de um visitante estrangeiro. Pelo contrário, era este que tinha a obrigação de o procurar. E quanto mais complicado e demorado fosse o processo maior era o prestígio do monarca almejado. Veja-se, por exemplo, as dificuldades sentidas por Portugal sempre que tentou enviar embaixadores à corte dos imperadores da China.

Leio mais tarde, num artigo de pendor académico versando as relações comerciais entre o Butão e os vizinhos da planície, que a primeira referência na literatura butanesa à aldeia onde nos encontramos remonta a 1619-20, quando, “a pedido de Darchug Gyeltshen”, governador local, Shabdrung visitou Chapcha, “povoação localizada a sul de Thimphu, na rota para Buxa-Duar, em Bengala”. Consta que o mencionado benfeitor era próximo do rei do Cocho (o nosso já conhecido Pran Narayan) e logo tratou de o informar acerca da presença do monge guerreiro. Aquele, célere, despachou embaixada com uma carta e vários presentes: “panos, trombeta, marfim e moedas de ouro e de prata”. Esta é, aliás, a primeira menção à presença de moedas do Cocho no reino butanês. Face a esta constatação, explicado fica o equívoco do nosso guia. De facto, Shabdrung, no âmbito da sua itinerância, estivera em Chapcha, mas seis anos antes da chegada de Cacela e Cabral.

Joaquim Magalhães de Castro

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