Bengala e o Reino do Dragão – 19

Moinhos de água oratórios

A contínua sucessão de curvas e contracurvas, que nos permite galgar metros em altura também, dão direito a breves paragens para adquirir bananas a uma família de vendedores de estrada e, uns quilómetros mais adiante, leite fermentado de égua – bebida bastante refrescante e muito do meu agrado, com sabor parecido ao airag mongol – a uma rapariga de desarmante beleza rústica que está acompanhada pela avó. Esta, nem tuge nem muge. Limita-se a fazer trançados com hortaliças silvestres.

Efectuamos nova paragem em local estratégico para que Sangay nos possa indicar qual o caminho trilhado pelos padres. «Estão a ver aquela aldeia lá em baixo?», pergunta. De facto, por entre o arvoredo avista-se uma pequena povoação, e na encosta oposta um caminho tortuoso. «Os padres atravessaram o rio e subiram essa enorme montanha em direcção a Chapcha. Foi uma extenuante caminhada de quatro dias numa zona extremamente acidentada», esclarece o guia. Dá para imaginar os sacrifícios suportados por Cacela e Cabral nessa sua entrada inaugural no “Reino do Trovão do Dragão”, como era conhecido o Butão, devido às violentas tempestades a que está sujeito.

De facto, e como nos dá conta a “Relação”, após quatro dias a penantes os jesuítas depararam com a primeira aldeia butanesa. Provavelmente Gedu. Ou então, a “anónima” povoação indicada por Sangay. Aí tiveram de permanecer, pois o butanês que os deveria acompanhar – “que é pessoa principal entre esta gente” – ficara em Rangamati a tratar de negócios. Confiara-os, por essa razão, a subalternos seus com ordens expressas para os não deixar passar “mais além” até que se juntasse a eles, “seis meses depois”.

No entender de Cacela a atitude do butanês não passava de um estratagema para lhes travar o passo. “Não se pode dizer facilmente a força que a gente de todas esta aldeia nos fez para que não partisse dela, representando-nos se o fizesse como então fazia sem guarda, roubos, cativeiros, mortes, e outras cousas, com tanta eficácia que era espanto”, lembra o padre alentejano.

Doze dias após a forçada permanência, Cacela, na companhia de um moço cristão “e dois gentios do Cocho, que sabiam alguma coisa desta língua” conseguiu iludir a guarda e pôs-se a caminho com o intuito de chegar a uma outra aldeia onde pudesse recrutar gente que lhe continuasse a mostrar o trajecto. Cabral ficou a aguardá-lo na aldeia.

Também nos quedamos em Gedu. Mas o motivo da demora é outro. Espera-nos um almoço que será também a nossa primeira experiência gastronómica butanesa. Mas que agradável surpresa! Deliciosos fetos salteados e um refogado de frango com batata e cenoura, com sabor a lar doce lar, retemperam-nos as forças e abrem-nos o apetite para as futuras e previamente agendadas refeições.

Retomado o caminho, reparo que a altitude permite agora o crescimento de abetos e pinheiros de vários tipos e feitos. Dos rochedos nus despontam pequenas e alegres cascatas cujo destino revelam outra das particularidades do Budismo butanês. Refiro-me aos moinhos de água com função religiosa. O movimento das suas pás não mói grãos de milho, antes faz girar coloridos cilindros oratórios acoplados nessa espécie de torre de pedra com tecto de eremitério. Acreditam os butaneses que o precioso líquido, desse modo abençoado, irá purificar todas as formas de vida presentes nos lagos e oceanos que o regato, e depois rio, alimentará no final do seu percurso.

No decorrer da dura jornada, Cacela cruzou-se com pessoas que viajavam para Rangamati e o aconselharam a regressar à aldeia. Assegurava um dos romeiros que uma vez resolvidos os seus assuntos na planície de bom grado o conduziriam ao rei do Butão. Cacela recusou-se a seguir-lhes a recomendação e prosseguiu viagem, não sem antes enviar por eles uma mensagem a João Cabral, para que este, caso fosse verdade o que diziam, pudesse acompanhá-los aquando do seu regresso, juntando-se assim a Cacela, ao moço e aos dois intérpretes. Estes deparariam mais adiante com novo grupo de andejos. Desta feita “soldados deste Reino dizendo que iam para a mesma terra para onde eu caminhava com os quais mostrando fiar-me deles, me concertei para me acompanharem e guiarem”. Mera ilusão e crasso erro. Ao cabo do segundo dia, em conluio com os “línguas” bengalis, os militares butaneses manhosamente assaltaram o padre deixando-o apenas com o breviário e o bastão para caminhar. Cacela descreve o episódio da seguinte maneira: “ao passar de uma ribeira, deixando-me já um pouco atrás tornassem aos moços essa pobreza nossa que levavam, repartindo-lhe de suas armas continuaram todos os quatro o caminho com tanta pressa que mostravam dar-se-lhes pouco de já os entender”.

Sangay Dorji está ao corrente deste episódio e, após umas quantas explicações sobre a função e simbologia das stupas – estruturas onde se encerram os restos mortais dos homens santos – conta-nos a sua versão dos acontecimentos. «Os dois padres foram assaltados por locais, embora estes não soubessem qual era a sua condição ou nacionalidade», diz. E conclui: «A notícia depressa chegou aos ouvidos do rei e este logo se apercebeu estar perante gente fora do comum. Por isso, ordenou que fossem bem tratados e tomou a decisão de vir ao seu encontro».

Esta é uma versão dos acontecimentos nada condizente com a da “Relação”, mas é obrigatório estar atento à tradição oral e às estórias locais, mesmo que não passem de simples lendas.

Joaquim Magalhães de Castro

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