Bengala e o Reino do Dragão – 17

Tigres e chá de Buxa

Apesar do descritivo patente nos escritos de Estêvão Cacela, da tão celebrada Colamborim (actual Kalabari) não restam quaisquer vestígios. Quanto a Rangamati é nome que perdura na vasta região ocupada pelas plantações de chá na vizinhança da fronteiriça Jaigaon. Metade da área desta cidade situa-se em território butanês e tem o nome de Phuentsholing.

Os primeiros butaneses com quem Cacela e Cabral se depararam alertaram-nos para as dificuldades que teriam de se submeter até chegar a esse reino, informando-os ainda que naquela época do ano a viagem não era possível “a respeito das muitas neves, ventos e chuvas de que diziam coisas notáveis”. Condicionados por tais imponderáveis, os missionários viram-se obrigados a aguardar quatro meses, “naquele reino do Cocho”, não nos dizendo exactamente onde. É muito provável que tenham regressado a Cooch Behar, ou até a Kalabari, de onde Cacela escreveu uma carta ao irmão Bartolomeu Fonteboa convidando-o a vir ter com eles pois “a gente do Potente nos facilitava o restante do caminho”, e uma outra ao superior da missão jesuíta em Cochim, ambas confiadas ao seu intérprete, “o língua que sempre trazíamos, por ser homem experimentado em caminhos e que traria muito bem o irmão”, só que Fonteboa acabaria por falecer pouco tempo depois de, em Hugli, receber a missiva.

Por essa altura adoeciam, primeiro, Cacela e, “daí a três dias, o padre João Cabral, ambos de cozois”.Ou seja, contraíram a malária, da qual Cacela depressa recuperaria mas que a Cabral quase lhe ia cobrando a vida, pois a ele “foi a doença sopeando tanto por mais que ele se animava, que o chegou a extrema fraqueza e o teve por muitos dias em grave perigo de vida”. Padecendo também, num estado ainda mais grave, estavam os moços cristãos seus servidores, “todos os quatro numa casinha em os meses de Novembro e Dezembro que a força das doenças durou”, tendo conseguido sobreviver, graças à intervenção divina, “sem médicos, sem mezinhas, sem serviço necessário, sem muitas comodidades”.

Com a máxima celeridade, enquanto se restabelecia o padre Cabral, e porque a época se mostrava propícia para dar início à viagem, Estêvão Cacela solicitou junto do monarca as devidas autorizações para demandar o Tibete. Diz-nos: “fui-me despedir do príncipe Gaburassa e haver dele suas chapas para o capitão do Potente e sua gente”.

O monarca facultou-lhes o solicitado e até, em sinal de benevolência, lhes ofereceu um cavalo, dando provas de alguma preocupação pelo seu futuro, como admite o jesuíta ao dizer-nos que Gaburassa se compadeceu de entregar aos de Potente, “pelo grande medo que os cochos têm daquela gente, vendo a liberdade com que se hão em Runate sem temer a ninguém, mas facilitando-lhe tudo com o gosto que tínhamos na empresa, me despedi dele”.

Cacela acrescenta ainda que esperaram em Cooch Behar todo o mês de Janeiro, pois ainda não sabiam que o companheiro com o qual contavam fazer a viagem tinha entretanto falecido. Além disso, precisavam absolutamente dos serviços do intérprete que fora enviado a Hugli. Como ele não chegava, decidiram partir para Rangamati. Ali aguardaram alguns dias mais, aproveitando o tempo para ajustar os preparativos para a longa viagem nas montanhas, dispostos a iniciá-la a 20 de Fevereiro. Um dia antes, pela tardinha, chegou a Rangamati o intérprete. “Nos apareceu um anjo vindo do Céu”, recorda Cacela. É certo que trazia a funesta notícia da morte de Bartolomeu Fonteboa, mas a sua presença abria a possibilidade de uma partida definitiva, que aconteceria a 21 de Fevereiro, “o primeiro dia de Quaresma”.

À saída de Cooch Behar, prontos a percorrer os noventa quilómetros que nos separam do Butão, deparamos com uma curiosa e pertinente placa de prevenção rodoviária. A encimar imagens esclarecedoras está escrito o seguinte recado ao anónimo motociclista: “helmet versus hell met”. Ou seja, “ou usas capacete ou encontras o inferno. Agora escolhe”.

A meio do percurso, a estrada principal para Jaigaon é graciosamente invadida por vasto arvoredo, âmago de uma reserva natural de tigres de Bengala, onde também buscam refúgio alguns elefantes, javalis e bisontes indianos, os ditos gaurs. No topo de uma colina no extremo norte dessa reserva, já bem perto da fronteira butanesa e a uma altitude de 900 metros, ergue-se um misterioso forte. Em Buxa – assim se chama a região – se travaram conflitos armados entre os soberanos de Cooch Behar e o rei do Butão, utilizando este o dito baluarte para proteger esse troço da Rota da Seda que ligava o Tibete à Índia. A convite dos senhores do Cocho, os britânicos intervieram na disputa e capturaram o fortim que lhes seria formalmente entregue a 11 de Novembro de 1865, na sequência do Tratado de Sinchula. Logo alteraram a estrutura de madeira e bambu por uma de pedra. O forte de Buxa seria usado, na década de 1930, como prisão de alta segurança. Era considerada, a par com a de Andaman, a mais inacessível da Índia. Décadas mais tarde, aquando da ocupação do Tibete, centenas de refugiados usaram-na como abrigo.

Apresentam-se no caminho diversas plantações de chá para onde se dirigem de bicicleta e em fila dezenas de assalariadas, uma mão no guiador a outra segurando a enxada ou um filho de colo. Conhecidas localmente como “jardins de chá”, à última dessas plantações apelidam-na de “Rangamati”. Terá sido ali que os estóicos missionários aguentaram os inesperados e penosos meses de espera.

Joaquim Magalhães de Castro

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