Bengala e o Reino do Dragão – 16

O Palácio do Gaburassa

Surpreendeu-me a reduzida dimensão da Cooch Behar com que nos deparámos, tinha já o dia encerrado os seus umbrais. Não fosse o caótico tráfego, pecha de toda a urbe hindustânica, dir-se-ia estancada no tempo. Sim, confesso, estava à espera de cidade mais avantajada. Compatível com os animados mercados de rua que aproveitando a amenidade pós-período de exposição solar vivem sobretudo à noite com exagerada explosão de luz e movimento, humano e motorizado. Ficamos hospedados numa das melhores pensões locais, a BD, com corredias cortinas de carmesim ao longo das janelas largas. Enfim, um luxo à indiana, embora não dispense as carpetes puídas e uma boa dose de pó. É tal a descontraída descaradez que nem se dão ao trabalho de o dissimular.

Na sua “Relação”, Estêvão Cacela traça-nos o aspecto geral da cidade, salientando a modéstia dos edifícios, opulência dos mercados e a grande quantidade de habitantes, vindos dos reinos de Patna, Rajamol e Gaur. Escreve ele: “Os bazares são muito onde se acha tudo que estas terras de si dão, em particular é Biar assinalada nas frutas de espinho que tem com notável vantagem às que tenho visto na Índia e principalmente nas laranjas de toda a sorte”. As ditas “frutas de espinho” eram os ananases, de resto, e à semelhança de tantos outros frutos e verduras, introduzidos na África e na Ásia pelos navegadores portugueses.

Na manhã seguinte levanto-me bem cedo e subo ao terraço. Ali, usufruindo panorâmica de 360 graus, aprecio as vistas citadinas. Nada de arranha-céus – graças a Deus! – e abundam jardins naturais entre as ruas perpendiculares. O varredor do templo hindu e os madrugadores triciclos e motorizadas vêem projectados no chão as suas sombras graças ao sol que se ergue no firmamento prometendo um dia quente, mesmo muito quente. Ao pequeno lago quadrangular com função ritual (mais parece um tanque imenso) que tenho pela frente chamam-lhe Lal Dighi, “Lago Vermelho”, réplica do de Calcutá, em cujas águas se reflectem as fachadas dos imponentes edifícios dos Correios e do Banco da Índia, e que deve o nome à cor dos tijolos com que é feito o forte ali perto.

No caso de Cooch Behar, o edifício vermelho mais próximo fica a umas boas centenas de metros dali. O Raj Bari, imóvel novecentista inspirado no palácio de Westminster, foi mandado construir por Nripendra Narayan, muito provavelmente no local da antiga residência dos seus antepassados. É talvez o único sinal que nos remete para o faustoso passado dos senhores do reino do Cocho. O rés-do-chão e o primeiro andar assentam numa série de varandas em arcada com pilares dispostos alternadamente em linhas simples e duplas. As extremidades sul e norte do palácio projectam-se ligeiramente e, no centro, uma varanda avançada dá acesso ao átrio de Durbar, caracterizado por uma elegante cúpula abobadada. O palácio conta com vários quartos, salas de estar e de jantar, salão de bilhar, biblioteca, vestíbulos. Os objectos preciosos que outrora decoravam estes espaços há muito levaram sumiço, restando apenas nas paredes retratos de ilustres personagens, escassa mobília, armamento branco e uns quantos instrumentos musicais. Não se entende, por isso, porque razão se interdita a fotografia e à entrada obrigam o visitante a passar por um detector de metais.

Após a vistoria, e antes de retomarmos o caminho, obrigatória a paragem num barbeiro local para uma boa escanhoadela e, em jeito de bónus, uma massagem completa ao couro cabeludo, rosto, braços e mãos. Garanto que é bem merecida a fama de que usufrui.

Cacela chama Ganges ao rio Torsa, classificação compreensível na época, pois eram Ganges ou Gangá – literalmente, “rio indiano” – todos os cursos de água que desembocavam no Golfo de Bengala. O autor da “Relação” chama desde logo a atenção para a ausência do monarca, que buscara refúgio numa cidade próxima devido a uma época de chuvas particularmente rigorosa: “poucos meses antes desgostando das inundações que o rio na cidade fazia, fez o seu assento mais pela terra dentro junto a um esteiro muito fresco do mesmo rio, lugar que dantes se chamava Colamborim, e deram-se os mercadores de Biar tanta pressa em dar gosto ao príncipe e fundar nova cidade que quando ali chegamos estava mui formosa na ordem e grandeza das ruas com vantagem a Biar”. Nesse local tiveram os jesuítas audiência com Gaburassa e daí, acompanhados por homens da confiança do rajá, partiram para Rangamati, no sopé das montanhas do reino do Butão.

Pran Narayan (1626-1665) – o Gaburassa mencionado na “Relação” de Cacela – governou em paz até 1657, altura em que no império mogol se iniciava uma luta dinástica entre Aurangzeb e seus irmãos. Pran Narayan aproveitou a situação para invadir Bengala, capturando, em 1658, Ghoraghat, importante posto avançado mogol, e, em 1661, Daca, a sua capital. Contudo, Aurangzeb havia já consolidado o poder invadindo com os seus exércitos o Behar e o Assam. Pran Narayan retirou-se para as montanhas e ali travou uma luta de guerrilha durante três anos, acabando por assinar um pacto de paz com o mogol Nawab Khan Shaista em 1664. Durante o seu governo o reino de Behar expandiu-se até Tajhat Baharband Pargana, a sul; Basakpur, perto de Khutaghat, distrito Goalpara, a leste; e Bhatgaon, incluindo o reino de Morang, a oeste. Pran Narayan, patrono das artes, reconstruiu os templos de Baneswar, Shandeswar e Kamteswari, em Gosanimari. Ordenou que se trouxessem arquitectos de Deli para completar o templo de Jalpesh, embora tenha falecido antes da conclusão dos trabalhos. Construiu ainda amplas estradas, pontes e belos edifícios na sua capital.

Joaquim Magalhães de Castro

 

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