Dezasseis milhões de páginas
A Igreja preparava-se para beatificar Pio XII quando surgiram nos jornais acusações sem fundamento que fizeram suspender o processo. Insinuava-se que ele teria sido condescendente com o nazismo e não se teria importado com o extermínio de milhões de judeus.
Os que o conheciam e tinham trabalhado com ele rejeitaram categoricamente tal ideia, mas os meios de informação preferiram a imagem ridícula de um Papa favorável aos nazis do que a verdade sóbria.
Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, as autoridades hebraicas tinham ido a Roma agradecer repetidamente o apoio de Pio XII. Até que, de repente, tudo se esqueceu, por causa daquelas invenções desvairadas.
Quando tudo parecia correr mal, começou uma inesperada colaboração entre historiadores católicos e hebreus que tem levado a repor a verdade de forma muito séria.
Entre os dias 9 e 11 de Outubro decorreu na Universidade Gregoriana, em Roma, um congresso internacional sobre estes trabalhos, promovidos por instituições católicas e hebraicas que tratam da história do Holocausto. As investigações vão durar ainda muitos anos, porque o material arquivado no Vaticano sobre estes acontecimentos tem dezasseis milhões de páginas e já está a vir à luz muita informação. Para uns, confirma-se o que sabiam; para muitos judeus, está a ser uma revelação inesperada e agradável, porque consideram que Pio XII foi um dos principais líderes éticos do mundo no período da Segunda Guerra Mundial.
É evidente que, ao longo dos séculos, muitos cristãos se portaram mal em relação aos judeus – e não só em relação aos judeus –, mas frequentemente a comunicação social transforma casos isolados em culpas colectivas e inventa bastante. Em contrapartida, o trabalho destes historiadores unidos por um objectivo comum está a gerar maior compreensão mútua. Um dos seus “slogans” é “não temos medo da história!”.
Alguns estão convencidos de que a Igreja cultivou o anti-semitismo até à declaração “Nostra aetate” do Concílio Vaticano II, em 1965. Afinal, sem prejuízo dos casos negros da história, há muito mais a dizer e muito mais interessante. Não para desculpar alguém, mas para conhecer a verdade.
Suzanne Brown-Fleming, do Museu do Holocausto de Washington, declarou a propósito: «É muito emocionante poder honrar a memória das vítimas e dos sobreviventes do Holocausto contando as suas histórias. (…). Estudar juntos os documentos, de forma aberta e transparente, leva-nos a uma avaliação histórica mais profunda». O Rabino Noam Marans manifestou «o pleno apoio e entusiasmo do American Jewish Committee», esperando que este trabalho «contribua para a nossa compreensão da actividade da Igreja durante o Holocausto».
A perseguição aos hebreus era conhecida no mundo livre, mas só parcialmente. Na sua autobiografia, o Rabino-chefe da sinagoga de Roma no tempo da Segunda Grande Guerra conta como lhe chegavam notícias dispersas, inverosímeis, vagas. (Mais tarde converteu-se e quis ser baptizado com o nome de “Eugenio”, em homenagem a Pio XII, que se chamava Eugenio Pacelli). Os horrores da guerra misturavam-se com crimes de natureza racial.
O mundo inteiro protestou pouco, e também Pio XII. Alguns interpretam-no como sinal de indiferença. É claro que a Igreja condenou explicitamente a ideologia nazi, já a Encíclica Mit brennender Sorge, de 1937, tratava apenas disso. Contudo, alguns esperavam mais.
Por um lado, a cruel perseguição e o imperialismo comunista – na Rússia, em Espanha e noutros países. Por outro, a esperança de evitar algumas violências, por exemplo, que fosse poupada a vida a alguns judeus convertidos ao Cristianismo. De facto, a maior parte dos judeus de Roma que escaparam à deportação e à morte salvou-se graças a essas declarações falsas. Além disso, as comunidades perseguidas tinham medo de mais represálias.
A par deste relativo silêncio, muitos cristãos, organismos da Santa Sé, paróquias, mosteiros, etc., acolheram judeus perseguidos. Documentos recentes identificam quatro mil e 300 pessoas refugiadas em institutos católicos de Roma, dos quais três e 200 eram judeus.
Os historiadores perguntam-se o que teria acontecido se o Papa tivesse protestado mais. Ter-se-iam salvo mais vidas humanas? Ou ter-se-ia produzido uma catástrofe pior?
José Maria C.S. André
Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa
Legenda: Estátua de Pio XII no Santuário de Fátima