Quase beijava o chão
É bonito quando se encontra alguém com incondicional amor e dedicação a Macau, sem sequer lá ter nascido.
Natural de Miragaia, nas raias da cidade invicta do Porto, António Sequeira da Silva Rosário nasceu em 1951. Conta com uma vida repleta de peripécias, e de dificuldades; uma vida de operário, mas sem grandes queixas.
A conversa com O CLARIM foi emotiva. Deu para perceber que António, que andou anos a sonhar com a família de Macau, é um verdadeiro macaense, mesmo que não tenha nascido no antigo território português.
Filho de Maria Eva Sequeira, que casou com um militar português – cumpriu treze anos de serviço na antiga guarnição portuguesa no Oriente – e ter-se-á radicado em Portugal na década de quarenta (o filho não sabe precisar a data), tem mais três irmãos, um deles entretanto já falecido, e uma irmã.
Um dos irmãos, militar, chegou a viver em Macau, terra que todos lembravam pelas histórias da mãe. Aliás, António (o “António Chinês”, como nos disse que era conhecido enquanto novo nas redondezas do Porto) relembra que foi a sorte da vida do seu irmão o facto de se ter oferecido para prestar serviço militar em Macau depois do pai ter sido preso pela PIDE. Esteve em Macau durante vários anos, tendo aproveitado para estudar. Aprendeu Inglês, o que lhe foi muito útil quando regressou a Portugal.
No caso de António, foi toda a vida operário. Os ordenados que auferia nunca lhe permitiram amealhar para fazer a viagem dos seus sonhos, a viagem que lhe daria a conhecer a cidade onde a mãe nasceu e onde conheceu o marido, assim como conhecer a restante e alargada família do lado materno – uma família típica de Macau, com o seu lado português e chinês, à semelhança de muitas outras no Oriente.
Tal sonho, depois de muitos sacrifícios e do apoio de muitos membros da família em Portugal e em Macau, foi realizado no ano passado, durante o Encontro dos Macaenses. António confessou-nos, meio emocionado, que se sentia triste quando as primas e outros familiares vinham a Portugal e lhe perguntavam quando iria visitá-los a Macau. Aproveitando a ajuda de todos e o motivo do encontro da diáspora maquista, juntou vontades e coragem e foi vinte dias à Macau da sua mãe.
Visitou vielas e becos, ruas e avenidas, perdeu-se e encontrou-se em locais que nunca antes tinha conhecido, mas que lhe eram familiares pelas palavras da mãe, do pai e do irmão militar. Uma cidade tão antiga como a idade dos pais, mas tão contemporânea como se fosse ali nascido há meia-dúzia de anos. António sentiu-se em casa e para isso muito contribuiu a sua família macaense. Deram-lhe guarida, mesmo que estivesse determinado a dormir debaixo de uma ponte. Não o deixaram em algum momento sozinho e teve a felicidade de experimentar tudo o que Macau tem para oferecer: tradição, boa convivência entre portugueses e chineses, e uma cultura única no mundo. Experimentou a comida chinesa e macaense (e também a culinária portuguesa de Macau), enfim, de tudo um pouco, regressando a Portugal sem querer vir embora.
«Saí de Macau maravilhado. É muito melhor do que aquilo que conhecia da minha mãe», disse.
A mãe, como macaense devota, nunca falou um palavrão… «pelo menos em Português», observou António, no meio de sorrisos, pois sabe muito bem que a mãe quando queria dizer algo menos apropriado optava por fazê-lo em Cantonense, para que ninguém a entendesse. Nunca ensinou Chinês aos filhos, algo que António não sabe se foi por vontade própria ou por o marido não deixar. Nos anos cinquenta e sessenta a sociedade em Portugal era muito fechada e pouco dada a «coisas chinesas».
António recorda que nunca gostou muito do pai porque maltratava a mãe, situação que só começou a melhorar quando os filhos começaram a ficar mais velhos e podiam defender a mãe, que era órfã de pai e mãe, sendo filha adoptiva de uma família macaense. Viveu vários anos num colégio e regressou uma vez a Macau, ainda antes da transferência de soberania, com a ajuda de um dos filhos. Foi uma viagem emotiva, realizada após a morte do marido, que permitiu conhecer toda a família que havia ficado no território, inclusivamente um tio que, anos mais tarde, voltou a Portugal e a levou para a sua segunda e derradeira visita à terra que a viu nascer.
Para António, a viagem a Macau foi o culminar de sonhos e de anseios de uma vida sofrida. A emoção ao chegar a Macau, vendo um sonho de vida concretizar-se, fê-lo sentir-se rejuvenescido e – como nos contou – só não beijou o chão porque não seria apropriado.
Hoje, reformado e com família, vive das memórias, satisfeito por ter realizado o sonho que o acompanhava desde há muito. Gostaria de levar a família a Macau, «mas isso, muito certamente, só irá acontecer se ganhar o Euromilhões», afirmou entre sorrisos.
O final da conversa foi um desenrolar de fotos que guarda religiosamente no telemóvel e que gosta de mostrar a todos os que lhe dizem conhecer Macau. O sonho carrega-o realizado no bolso das calças e percorre-o sempre que, com lágrimas nos olhos, fala de cada fotografia e de cada momento que viveu durante vinte dias em 2016.
É isto que é ser macaense: é ter amor por Macau, sentir a alma do território, ser “filo” da terra mesmo sem lá ter nascido.
João Santos Gomes