A falange relíquia
Conta a história que uma «senhora muito devota» da família Mendia de Castro, casada com um dos vice-reis da Índia, numa ocasião em que o incorrupto corpo do Santo estava exposto para que fossem beijados os seus pés, como é da tradição em cada dez anos, aproveitou para, no momento do ósculo, arrancar uma falange do dedo mindinho, guardando-o cuidadosamente na boca. E assim surgiu uma relíquia que ainda hoje permanece na família e que é muito respeitada por todos os seus membros, como garante Luís Eduardo Mendia de Castro, «Conde de Nova Goa».
Resguardada num sarcófago de prata, a relíquia está em local, como seria de imaginar, e para sua salvaguarda, «que só os deuses conhecem».
De vez em quando, a família acrescenta o apelido do Santo a um novo rebento, para honrar a veneração secular. É o caso do «primo Francisco Xavier», assim chamado para perpetuar o nome do santo nativo do Reino de Navarra. Houve também um padre na família, já falecido, «irmão do meu pai», a única pessoa que estava autorizado a mexer na relíquia, «e só num desses dias especiais em que todos a podiam venerar e rezar à volta dela».
Mendia de Castro preside a Associação da Nobreza Histórica de Portugal, «instituição que tenta manter os valores da nobreza», que são principalmente o serviço. «Um serviço que antigamente era feito ao rei», esclarece, «mas que hoje é feito aos outros», independentemente da sua origem social.
Para além da falange, a família Nova Goa tem em sua posse outras relíquias menores, entre elas, pedaços da túnica do Santo. O Conde lembra os tempos de estudante, quando levava consigo um desses tecidos dentro da camisola para ter sucesso nos exames. «Achávamos que aquilo funcionava, e essa fé é que era importante», diz.
Os Castro foram para Índia em 1550, para Damão inicialmente, e mais tarde para Goa onde ergueram palácios e serviram o rei, tendo aí permanecido até 1850. «Esta data marca o regresso definitivo a Lisboa do representante da família, e meu bisavô, D. Luís Caetano de Castro», esclarece. O título “Conde Nova Goa” seria concedido pelos «valiosos serviços prestados à nação em terras do Oriente».
Para dar uma ideia «do que chegou a ser o esplendor» dos Castro, o nosso interlocutor, sentado no sofá de sua casa, não muito longe da prata da família e de uma estátua de marfim do Menino Jesus de arte indo-portuguesa, lê extractos da carta de uma tia sua, escrita em 1950, na qual ela revela o espanto demonstrado por um certo personagem indiano, «visita regular da casa», que dizia que quando via os membros da família sair de carro e de coche, constatava que estes «levavam batedores à frente, como os reis, para que todos se afastassem».
Os tempos são agora outros. Ontem domínio dos Nova Goa, hoje escola gerida por dominicanos. Mas se os Castro perderam palácios a Oriente, outros ganharam na metrópole, em Tomar, graças a casamentos de estratégia. Um deles, ligou-os à família dos Abreus – que se julgavam de tal forma poderosos que de si próprios diziam, “depois de Deus só os Abreus” – mais propriamente a António de Abreu, que uma decisão de tribunal, “na sequência de uma disputa com os frades do convento de Cristo”, mandou comandar naus para Malaca, tendo sido ele, de resto, um dos “descobridores” das ilhas Malucas.
À semelhança do Conde, é em Espanha que se deve buscar a origem do santo Xavier. Também em berço de ouro nasce Francisco, no castelo de Solor dos Aguares y Javier, “família rica de bens materiais e títulos honoríficos”, sem que esse factor impeça o futuro jovem de manter uma estreita ligação com a população em geral. Tal traquejo facilitar-lhe-á, no decorrer das suas viagens, o contacto com os povos e locais que visitava, tendo sempre demonstrado, o dito Apóstolo do Oriente, uma extraordinária capacidade de adaptação.
Formado pela Universidade de Paris, Xavier era talentoso nas línguas e nas artes de engenharia. Amigo de Inácio de Loyola, com quem visitou os Lugares Santos, ingressa no Seminário e com Inácio estabelece as bases daquela que viria a ser Companhia de Jesus. A sua debilidade física não o impede de responder ao apelo de D. João III, que ansiava ver partir evangelizadores rumo ao Oriente. O apelo sentiu-o de tal forma que a partir de então assume-se como “português de coração”. Ainda hoje, por toda a Ásia – de Goa a Malaca, de Macassar às Malucas ou do Japão à China, onde morreu, mesmo às portas do império que em vão quis evangelizar – Xavier, venerado como nenhum outro, é sobretudo memória lusa.
Em Goa voltamos a encontrar o vínculo que liga o Santo ao Conde. Tal como para os Castro, Goa foi a paixão primordial do basco Xavier. E a Goa foi parar o seu corpo, hoje relíquia-mor pretendida por toda a cristandade asiática e africana. Santo padroeiro de Goa e dos goeses, sejam católicos ou hindus, todos o invocam ou se colocam sob a sua protecção.
Joaquim Magalhães de Castro