Os “Cristãos Escondidos” no Japão – II
Mas… que cristãos? Com esta pergunta ficámos a reflectir na semana passada. Uma questão cuja resposta ilustra o título destes artigos. As comunidades de “Cristãos Escondidos” começaram a formar-se a partir de meados do século XVII, pouco depois da proibição de entrada de missionários católicos e a saída de japoneses. Mas nem tudo seria em estricta conformidade com os preceitos e tradições da Igreja Católica, muitas coisas em parte mudaram. Para começar, não mais existiam sacerdotes…
A formação e consolidação destas comunidades começou, de facto, sem sacerdotes que as dirigissem espiritualmente e as ligassem ao exterior e à actualização doutrinal e sacramental. Sem presbíteros, a organização era diferente. Se se puder falar de “organização”, claro… Estes cristãos japoneses tinham que externamente mostrar que eram xintoístas (Xintoísmo: “caminho dos deuses”, espiritualidade tradicional japonesa) ou budistas, pois de outra forma correriam perigo e perigariam a comunidade. Praticavam os rituais e rezavam as orações dessas “religiões” oficiais do Japão, mas no seu íntimo, escondido lá no seu coração, eram cristãos convictos.
Usavam estatuetas do Boddhisatva Kannon, divindade budista da misericórdia, equivalente a Guanyin (transliteração chinesa do sânscrito Avalokitasvara; Kun Yam, em Cantonês), uma adaptação japonesa da deusa hindu Cintamanicakra. Eram usadas essas imagens para representar de forma secreta a tão amada Virgem Maria, uma referência espiritual e de estímulo para esta comunidade de criptocristãos. Mesmo outras divindades “pagãs” eram usadas ou pelo menos existiam nas casas dos cristãos japoneses, como a de Maitreya, o “Buda do fim dos tempos”, da renovação, associado a Cristo em oração e com uma dimensão escatológica e redentora idêntica. Tratava-se de um uso de imagens ou pelo menos da sua posse para que não houvesse desconfianças; ao mesmo tempo, cada uma delas “recordava” e servia de “transfer” espiritual para uma figura do Cristianismo, esse bem guardado a sete chaves no coração dos crentes.
Resiliência e sacrifícios
O culto era praticado em absoluto segredo e cuidado em casa, muitas vezes em alçapões e devidamente controlado no que respeita a quem participava. As orações, como as imagens, tinham uma nova recitação, mas sempre de modo a soar como cantos budistas, no tom como no sentido. Todavia, em alguns casos mantiveram-se palavras sem tradução do Latim, do Português e do Espanhol, as línguas dos missionários e do Catolicismo japonês até ao sakkoku (proibição) de 1638. A Bíblia não foi esquecida. Era transmitida de forma oral, recitada e memorizada ao longo de vários anos. Era grande o medo de que se fossem descobertas bíblias e outros livros litúrgicos, ou sobre a Igreja, fossem descobertos e depois confiscados pelas autoridades, o que acarretava a prisão, tortura e martírio eventualmente dos seus proprietários. Não existiam mais sacerdotes, expulsos no século XVII, como se viu, pelo que eram leigos que dirigiam espiritualmente as comunidades e encetavam a realização das actividades “litúrgicas”.
Era uma existência de risco, difícil, que exigia sacrifícios e lágrimas, uma espera que se sabia que podia durar gerações, ou sempre! Mas esperava-se, resilientemente, movidos que eram estes cristãos por uma fé inabalável. Mas algumas comunidades, no meio desta adaptação exterior de cultos e na persistência dessas formas de encriptação, acabariam por se afastar do autêntico Cristianismo, algumas mesmo vindo mais tarde a cortar laços com a Igreja Católica (no século XIX, depois do renascimento). Estas comunidades que se isolaram e afastaram do Cristianismo registaram uma perda crescente do significado das suas orações, dos seus ensinamentos diluídos e da sua matriz cristã, transformando o seu culto, mesmo que encriptado, em uma espécie de culto aos antepassados, mesmo que afinal esses mesmos antepassados fossem… os mártires cristãos. Mas não era já uma forma cristã, mas antes algo muito sincrético e sem referentes antigos. Mas não foi assim em todas as comunidades.
É importante referir que na época da perseguição ou de clausura do País ao exterior (aos missionários católicos, diga-se), mesmo com todo o controlo e vigilância das autoridades, não deixaram de se registar tentativas de entrada clandestina de missionários no Japão. Oriundos da Coreia, do Sul da Índia e da China, várias foram as tentativas, sem êxito, de entrada de missionários em segredo. Muitos intentos nunca se materializaram, outros falharam e voltaram para trás. Pouco mais se sabe acerca de outras tentativas.
Mas uma das que conseguiu chegar a solo nipónico é conhecida e documentada. Um padre italiano, Giovanni Battista Sidotti (1668-1714), siciliano, conhecendo as vicissitudes dos martírios no Japão e o sakkoku de interdição, resolveu-se a ir missionar no País dos Crisântemos. Com permissão do Papa Clemente XI (Papa entre 1700 e 1721), lá rumou ao Japão, via Manila (Filipinas), onde ninguém o quis ajudar e levar ao país fechado. Em Agosto de 1708 conseguiria desembarcar, vestido de samurai, na ilha de Yakushima, ao largo de Kagoshima (não longe de Nagasaki). Mas seria traído pelos seus traços fisionómicos, tendo sido preso e levado para Nagasaki e daí para Edo (actual Tóquio), onde foi interrogado pelo filósofo confucionista Arai Hakuseki. Este ficou deveras impressionado com a cultura e capacidade retórica e dialética do sacerdote italiano, num diálogo aberto e de elevada erudição, conforme registos do japonês. Era o primeiro contacto do género desde a interdição imperial de meados do século XVII. Sidotti conseguiu convencer Hakuseki das boas intenções dos missionários, ou seja, de que não eram a vanguarda ou pioneirismo de qualquer invasão militar, acusação que serviu de pretexto aos Tokugawa para expulsar ou martirizar todos os católicos, missionários ou leigos, no Japão.
O japonês aconselhou então os seus líderes a usarem três vias nas relações com os estrangeiros e principalmente com os missionários: em primeiro lugar, deveriam deportá-los; se não se conseguisse, deveriam ser presos e isolados; a pena capital só deveria ser, em último lugar, aplicada em casos extremos. Recomendações sem precedentes num país onde a última forma era quase sempre a solução.
Sidotti foi preso, na Kirishitan Yashiki (キリシタン屋敷, “casa dos cristãos”), perto de Tóquio, construída em 1646 para recolher os missionários presos, mas nunca tinha até então sido utilizada, já que os que foram presos conheceram a “solução extrema”. Sidotti, guardado em prisão domiciliar por dois cristãos que renegaram a sua fé, foi depois torturado, pois foi descoberto que pregava àqueles dois antigos cristãos. Transferido para um buraco subterrâneo na casa, ali morreu aos 46 anos, em 1714. A vida estava difícil para os cristãos no Império do Sol Nascente….
Vítor Teixeira