A História de Pedro Machado Miranda Malheiro – 1

O jovem resistente.

Podemos considerar o Jardim Botânico, «o ambiente mais tropical que se pode arranjar em Lisboa», um verdadeiro museu, pois aí se cultivam, se mantêm e até se guardam espécimes, algumas em extinção, maioritariamente vindas dos espaços das antigas colónias obedecendo à uma política científica praticada em Portugal ao longo dos séculos XIX e XX através das ditas explorações científicas, quer no Brasil quer em determinadas regiões de África, explorações ainda hoje tão mal conhecidas, infelizmente. Para além das espécies botânicas presentes nesse espaço destinado a ser fruído pela população encontramos também animais; à solta, como convém.

«É um hortus amenus, paredes meias com o Mosteiro dos Jerónimos, que é uma das pérolas do nosso património», resume Maria Adelina Amorim, historiadora especializada na vertente brasileira da nossa História.

É o Jardim Botânico, pois, o local ideal para falarmos das questões da Expansão Portuguesa no mundo e dos homens que a fizeram, pois a Expansão não é, «como alguns mal informados dizem», um movimento aleatório.

Entre esses personagens consta Pedro Machado Miranda Malheiro, ou Malheiros – «aparece grafado de diferentes maneiras» – entre os finais do século XVII e a primeira parte do século XIX, talvez uma das figuras mais importantes ligadas à Corte em Lisboa.

«Temos de perceber que estamos a atravessar um período muito marcado pela questão das invasões francesas e pela subsequente perda da nossa independência em relação aos franceses, e até em relação aos ingleses, numa segunda fase», lembra a nossa interlocutora.

E este Miranda Malheiro, pelo prestígio que já tinha no reino, «uma vez que descendia de figuras fidalgas naturais de Guimarães» – onde nasceu, em 1780 – foi certamente um dos mais ilustres minhotos do seu tempo. Figura de proa, multifacetada, contraditória, embora hoje praticamente desconhecida na cidade berço.

«Malheiro é muito mais conhecido no Brasil, onde morreu depois de se ter naturalizado brasileiro», garante Adelina Amorim. É um dos típicos casos de um português que sai da terra «para fazer o mundo», como se costuma dizer, embora em condições privilegiadas, pois era um homem da Corte, um jurista ligado a todos os cargos que é possível ter da sua carreira jurídica.

Miranda é essencialmente um homem de leis formado em cânones, em Coimbra, nos finais do século XVIII, e cedo se transformaria em prestigiada figura de topo da Igreja, e isto num período anterior às invasões francesas. Vê-lo-emos a lutar, em 1808, com 28 anos apenas, contra as tropas napoleónicas, pouco antes da partida da Coroa para o Brasil, tendo sido até considerado um herói. Congrega em torno de si gente de Amarante, Guimarães, Lamego, sendo um claro líder nesse processo. Forma com eles uma espécie de milícia, voluntários de infantaria pronta a não dar tréguas às forças franceses. «Portugal foi um país muito resistente à invasão francesa, muitíssimo resistente mesmo, pode dizer-se, resistência que vem de dentro», refere a historiadora.

Que Malheiro era uma pessoa corajosa já o sabemos; agora, seria ele também um fervoroso homem religioso? Ouçamos a especialista: «Quando se tomam ordens – é assim que se diz quando alguém entra para a vida religiosa – fazem-se inquirições ao passado familiar do candidato à ordem religiosa – saber o nome dos pais, dos avós, até à quinta geração. Era uma forma da Igreja controlar as proveniências das pessoas, saber se elas tinham ou não sangue judaico, se eram descendentes de cristãos-novos. Em Portugal, as inquirições eram bastante cuidadosas. Mas a inquirição de Miranda Malheiro desapareceu».

Maria Adelina Amorim não crê que isso se deva ao facto do ilustre vimaranense ter eventual origem judaica. E conclui: «O que temos a certeza é que era um homem que se movimentava muito bem nos corredores do poder, quer eclesiástico quer civil».

Sabe-se que Miranda Malheiro esteve envolvido num processo judicial bastante complicado resultante de uma ilegalidade cometida. O procurador que o representou nesse processo a determinada altura escreve este paradigmático parágrafo: “para que no juízo do contencioso possa por seu procurador livrar-se do crime de receber ordens sacras com reverenda falsa e prosseguir no mesmo crime sem residir nas audiências”. Ou seja, tudo leva crer que Miranda Malheiro tenha de algum modo (algo que carece confirmação, e em História há que ter muito cuidado com estas coisas porque os documentos tem de ser aferidos e contrastados) cometido uma ilegalidade.

Mesmo um herói é um ser humano e como tal tem os seus defeitos e as suas virtudes. «É absolutamente necessário estudar melhor a sua proveniência, as suas origens, a sua conduta, porque Miranda Malheiro representa aquilo que é o ser humano, com todas as suas contradições. Nunca se é totalmente bom ou totalmente mau. E a verdade é que durante a sua vida ele tem momentos de conduta menos boa».

Nasce em Guimarães, faz toda a sua vida estudantil em Coimbra, no final de XVIII, o que comprova que provém de famílias com rendimentos. Forma-se em leis a acaba por ficar a reger a cadeira de História Eclesiástica, o que para a época tinha um grande peso. Adquire ainda outras notoriedades: fica detentor de algumas capelas, óbvio sinal de distinção, pois para isso era preciso dispor de património próprio, e um património notável. Após ter sido nomeado monsenhor, o nosso personagem esteve ligado à Patriarcal de Lisboa, posto elevado na carreira eclesiástica. Duas facetas num mesmo homem: homem de leis e homem de Igreja, absolutamente de topo, ligado à Casa Real por questões de nascimento, não da casa de Bragança, mas sim da fidalguia do seu tempo.

«Temos a sorte de ter connosco nos arquivos, no Arquivo Distrital de Braga, um documento onde vem explícito todo o seu património, desde a sua casa paterna, porque a mãe, entretanto, enviuvou e ele é um dos herdeiros. Esse é um documento do século XVIII, lavrado muito antes de imaginarmos a importância que esta figura iria ter na formação do Novo Brasil e até do Brasil independente no século seguinte», informa a historiadora. Este documento fornece-nos o nome do local onde vivia Malheiros, na Quinta da Bornaca, freguesia de São Pedro. Dá-nos ainda a indicação da casa onde viviam os seus pais, a Rua dos Nais, que hoje desapareceu da toponímia local.

Pedro Miranda Pacheco Malheiro é, pois, uma figura que merece um estudo consistente dada a importância que teve, quer em Portugal quer depois no Brasil, «na transição do Brasil colónia para o Brasil independente», porque temos de ver que ele parte para lá no final da sua vida numa altura em que o Brasil se torna independente. Quando D. João VI regressa a Portugal Malheiro é impedido de entrar no Pais, «pela acção das nossas Cortes», e acaba por se naturalizar brasileiro, morrendo no Brasil depois de concretizar o expoente máximo da sua obra que foi a fundação da designada Nova Friburgo, uma das mais importantes cidade do Brasil actual.

É curioso notar que sendo ele originário do berço da nação venha depois a ser um homem que se destaca no período final do Brasil já elevado a reino. Ele vai para o Brasil precisamente por se ter destacado nesse papel tão óbvio de afirmação de Portugal, ou melhor dizendo, de defesa da soberania de Portugal. E como tinha uma vasta experiência na área das leis é convidado pelo próprio D. João VI a acompanhá-lo.

Miranda Malheiro é uma das mais iminentes figuras que parte de Lisboa com a Corte em 1808 e ficará sempre junto do rei. É ele, aliás, que está na origem das grandes providências que D. João VI vai tomar. Já no Novo Mundo acabará por ser nomeado Desembargador do Paço, um posto administrativo que é criado no Brasil quando D. João VI aí se estabelece e que corresponde àquilo que consideramos hoje como Tribunal da Primeira Instância. Será Miranda Malheiro o detentor dessa enorme responsabilidade num momento único de completa mudança, já que assistimos a um verdadeiro período charneira do Brasil colónia para o Brasil independente.

Joaquim Magalhães de Castro

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