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A Rádio Renascença (RR), emissora católica portuguesa, celebra este ano 80 anos de existência. Nasceu durante o Estado Novo, no mesmo mês que hoje em dia se associa à liberdade. Resulta do encontro de duas figuras, monsenhor Lopes da Cruz e o cardeal Cerejeira, que colocaram a Igreja da altura à frente do seu tempo ao projectarem uma rádio «igual às outras», mas com uma leitura crente da realidade.
Chegamos às instalações do grupo Renascença Multimédia numa quinta-feira de sol. Ainda não entramos e já se podem assinalar três pontos de mudança na história da emissora católica: a Rádio Renascença já não é só uma rádio, tornou-se um grupo, em que funcionam quatro rádios (Mega Hits, RFM, Renascença e Rádio Sim). Por outro lado, a emissora católica já não vive só do tempo e espaço em antena, mas expressa-se numa linguagem multimédia. Finalmente, as instalações, na Buraca, são recentes e partiram das novas necessidades do projecto. Até ao ano passado, o grupo estava instalado no coração de Lisboa, num prédio do Chiado.
A Rádio Renascença nasceu oficialmente a 10 de Abril de 1937, durante a governação de Oliveira Salazar, e passou por episódios importantes da História nacional e mundial: a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a revolução de Abril, a entrada de Portugal na CEE, a queda do muro de Berlim, entre muitos outros. Nasceu no pontificado de Pio XI e viu a eleição de mais sete Papas. Uma história que celebra agora 80 anos.
Somos recebidos pelo padre Américo Aguiar, presidente do Conselho de Gerência do Grupo Renascença Multimédia desde Outubro de 2016, sucedendo ao cónego João Aguiar.
Vamos directos ao início da história. «Há um momento muito significativo que é o encontro de duas figuras insignes: uma, o cardeal Cerejeira. Todos sabemos da força da sua presença, da profundidade das suas decisões e da persistência do seu pontificado em Lisboa. [A] outra, inovadora, empreendedora para o tempo, que foi o monsenhor Lopes da Cruz». O padre Américo Aguiar chama-lhe, adiante na conversa, um «João Baptista do multimédia», um precursor, uma figura com «uma percepção da realidade do fenómeno da comunicação muito avançada para o tempo», e a quem foi dito para sonhar e fazer em grande pelo cardeal Cerejeira.
«Os pobres, quando fazem, fazem uma vez. Quem tem poucos meios, quando aposta é a única aposta possível, e por isso o encontro deste inovador com este persistente pastor fizeram nascer uma coisa que na altura não era propriamente evidente que resultasse», recorda o actual presidente. «Os tempos conturbados, do regime, da I República, da relação dos cidadãos com os católicos… Todo este contexto faz com que estas figuras mereçam um lugar muito especial, 80 anos depois, ao evocarmos a fundação da Rádio Renascença».
Oito décadas depois, o «sonho em grande» continua a ser uma realidade, tal como a realidade, com dificuldades e superações.
A superação está, de acordo com o sacerdote, na relação criada entre a rádio e os ouvintes, uma rádio que lhes «inspira verdade». «E isso é um activo que não podemos desprezar nem deixar de salvaguardar», garante. Porque é esse activo, também, a par do trabalho desenvolvido, que permite um reconhecimento. O prémio de marca de confiança das Selecções do Reader’s Digest, ou o prémio 5 estrelas para melhor rádio de informação, são um «associar a Renascença à notoriedade, à verdade, ao rigor e isso não tem preço!», diz o presidente, acrescentando que o reconhecimento da Renascença como «salvaguarda da verdade é o maior presente destes 80 anos». Um presente do qual não recolhe os louros, mas atribui ao trabalho dos seus seis antecessores, o último dos quais o cónego João Aguiar.
Ainda na área da superação entram todos os desafios com que a Renascença se tem deparado ao longo da história e que tem conseguido ultrapassar.
Um deles decorre da sua própria génese, a de fazer uma leitura crente da sociedade. Desculpando-se pela imagem, o presidente da RR diz que fazer isto não significa uma rádio: «afogada em água benta», ainda menos quando se tem quatro rádios, para públicos diferentes, a transmitir 24 horas por dia.
Mas o que também não pode deixar de fazer, na opinião do seu responsável, é “perder-se” na oportunidade de evangelização no meio das inúmeras possibilidades e escolhas que os media permitem. «Quer nos anos 30, quer agora, estamos cada vez mais urgentemente convencidos que já que os media permitem chegar onde nunca se chegou, é importante que não cheguem lá [só] os outros, mas que chegue também a mensagem e o anúncio de Jesus Cristo». Outro dos desafios é que essa mensagem tem de estar ligada àquilo que é a realidade, a vivência das pessoas e as suas preferências, com mais ou menos palavra, com mais ou menos entretenimento. E que as pessoas ouçam!
Na RR têm sido feitos ajustes na grelha de programação, para atingir um ponto de equilíbrio que permita mostrar a realidade agradando aos ouvintes, que preferem as rádios musicais. «Tentamos dosear com equilíbrio aquilo que são oportunidades de catequese, aquilo que são oportunidades de evangelização, aquilo que são oportunidades de anúncio, aquilo que são oportunidades de leitura crente dos acontecimentos, mas sem os “zangar”».
E este é um aspecto importante, explica o presidente, porque as rádios mais ouvidas são as musicais (com a RFM a liderar) e não as generalistas (ainda que a Rádio Renascença também seja líder nas informativas). E os projectos têm de ser sustentáveis.
Deixamos, por momentos, o retrato institucional e descemos ao espaço dos estúdios para ver outra face do projecto, as vozes.
Damos o objectivo por conseguido assim que vemos, no corredor, Aurélio Carlos Moreira, o mais antigo profissional em exercício, a caminho da mesma data de aniversario da rádio onde trabalha há 61 anos.
«Ainda trabalhei com o monsenhor Lopes da Cruz, o fundador, que era uma pessoa extraordinária, era o director da rádio, mas delegava nas pessoas… nem se dava por ele», recorda. Sobre a Renascença, não tem dúvidas de que continua a ser uma «empresa importantíssima e um exemplo da rádio em Portugal, onde nasceu muita gente». Já sobre a rádio, no geral, acredita que, com a evolução tecnológica a que se assistiu, o cenário poderia estar muito diferente. A culpa, diz, é do sistema e das audiências, porque «gente competente e de valor» há muita, mas está «castrada», pouco apta para a espontaneidade e para o improviso. E para a iniciativa. Ilustra a afirmação com a liberdade que tinha para pensar em reportagens, mesmo que implicassem viagens e hotéis. «Só não me traga facturas», diziam-lhe. A publicidade tinha de garantir os custos.
Esta realidade hoje já não é possível, não só porque o «bolo-rei» que era a publicidade se transformou num «bolo-de-arroz», como referiu o padre Américo Aguiar, mas também porque é preciso «ver se essa reportagem se enquadra no que pretendemos alcançar, se é uma reportagem dentro da idade tal…», brinca Aurélio Carlos Moreira, mimetizando.
O locutor usa do humor e do riso a cada história que conta, e são muitas. Escolhemos duas, para ilustrar o avanço tecnológico e um momento da história do País: «O que seria eu nos primeiros tempos com um simples telemóvel? Sabe o que eram telefones em que não havia ligações directas? Se falasse de Chaves para Lisboa, de Chaves ia ao Porto, do Porto a Lisboa… sabe o que é trabalhar numa circunstância dessas? Ou haver um telefone, de vez em quando na estrada, todos a correr para o telefone, chegávamos lá já estavam três na “bicha”», conta, entre risos.
E como era trabalhar no tempo da censura? Nessa altura não havia escolas de rádio em Portugal e Aurélio tirou o curso numa escola de Espanha (um misto de ensino presencial e à distância). Baseando-se nas suas dificuldades, o locutor, em 1959, faz um artigo para a rádio, dizendo que devia haver uma escola em Portugal, tal como havia em Espanha. «E dei o exemplo do que se tinha passado comigo, pensando que eles não me chateavam porque em Espanha estava o Franco. Veio cortado o artigo de alto a baixo, com o lápis azul, e à margem dizia assim: “É uma grande verdade, mas habitue-se, como jovem que é, que nem todas as verdades se podem dizer”».
E assim passamos à redacção, um “open space” onde se trabalha uma nova maneira de fazer informação, como nos explica Graça Franco, directora de informação da Renascença, mas sem perder a identidade. «A informação da Renascença é, no fundo, o que sempre foi. É uma informação que essencialmente busca a verdade, extraordinariamente independente, e é uma informação que se quer que transmita um olhar cristão do mundo. E isto significa o quê? Evidentemente que somos, em questões como a vida, cristãos, pró-vida desde a concepção até à morte, isto está claro no nosso estatuto editorial». Mas significa também tornar a noticia «o mais próximo, o mais compreensível e, na medida do possível, o mais esperançosa, porque, de facto, não estamos aqui para ver tudo negro… quando é negro, é negro, mas tentamos procurar saídas».
A grande diferença na informação, após 80 anos, está no modo como ela é transmitida, não só em antena mas também nas mais diversas plataformas. «Com este novo modelo que adoptamos, passou a existir uma rádio que se quer diferente, porque se quer plenamente informativa, mas também plenamente de entretenimento. Deixámos de ter um ar muito engravatado» sem perder a credibilidade, garante a directora.
O que traz desafios. «Ser hoje, como foi na altura, pioneira. Nós fomos, há dez anos, pioneiros no multimédia. Ganhámos uma sequência de prémios de ciber-jornalismo. Estamos preparados para um mundo em que, em rigor, não somos mais rádio. A rádio, ou seja, este suporte, faz 80 anos, o grupo é Renascença Multimédia. Nós somos produtores de conteúdos para todas as plataformas», diz, orgulhosa da sua redacção. «O futuro não nos mete medo».
E trará mais novidades na área digital, prometeu o presidente.
RITA BRUNO
Família Cristã