O encontro com os cristãos da Abissínia.
O Mar Vermelho, que os portugueses de outrora chamavam Mar Roxo, foi, ao longo do século XVI, intensamente percorrido pelas naus com a Cruz de Cristo estampada no velame, e que tinham por principal objectivo espiar as actividades dos turcos, o inimigo mais temido. Os portugueses tinham-se posicionado naquela região, estabelecendo feitorias em Arquico, muito perto de Maçuá, e na ilha de Socotará. E depois havia a Abissínia, terra cristã e aliada, demandada, em 1487, por Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã, enviados do rei D. João II com a difícil missão de partir à descoberta, por via terrestre, do afamado Reino do Prestes João, procurando, no decorrer dessa jornada, obter o máximo de informações sobre o Índico e as preciosas especiarias que aí se transaccionavam.
Como resultado desse contacto entre povos cristãos, embora de rito diverso, a rainha regente Eleni decidiu enviar uma embaixada etíope e confiou-a ao comando do mercador de origem arménia Mateus. Este, há muito residente no reino, apresentaria credenciais “e um fragmento da Vera Cruz”, em Lisboa, ao rei D. Manuel I, corria o ano de 1515. Eivado de grande significado político e simbólico, o acontecimento teve vasta repercussão na Europa “através de cartas remetidas para as cortes europeias e papal, relatando a chegada do embaixador do mítico Reino do Preste João, identificado com o Reino da Etiópia”. Uma embaixada portuguesa foi de imediato despachada, e com um valioso presente. Porém, imponderáveis vários e a morte do embaixador Duarte Galvão atrasaram a comitiva, que só em Abril de 1520, e já sob a chefia D. Rodrigo de Lima, entraria nas terras altas da Etiópia, “pelo porto de Massawa”.
Senhora de uma imensa curiosidade, a rainha de Etiópia quis saber como era o Papa, quantos reis cristãos havia no mundo e se aqueles seus estranhos irmãos na fé tinham visitado o Santo Sepulcro, ansiando, acima de tudo, que eles anulassem rapidamente o predomínio dos turcos, inimigos de ambos.
Constituía a Abissínia de outrora os actuais territórios da Etiópia e da Eritreia, hoje inimigos figadais. Asmara – uma “Roma no corno de África” – e Lalibela, com as suas igrejas talhadas em pedra, datadas do século XII, eram então as duas principais referências do mítico reino cristão. Mais tarde, e como resultado de um continuado contacto luso-etíope, surgiriam os amuralhados castelos de Gondar (inspirados nos nossos) e que ao longo dos séculos foram sendo adaptados ao gosto local, sem que a matriz portuguesa se tivesse desvanecido. Matriz essa que compreende um vasto e rico legado arquitectónico que se estende por uma região que tem como ponto de referência o lago Tana, situado num planalto a mil e 800 metros de altitude, bem no interior do País. Perto desse lago situa-se a nascente do Nilo Azul, cuja “descoberta” as enciclopédias anglo-saxónicas (que frequentemente ignoram os feitos portugueses) atribuem a um escocês, embora o local tenho sido visitado muito antes por portugueses, fossem eles missionários, soldados ou simples aventureiros, pois dessa massa era feita a gente que palmilhou os recantos da Abissínia séculos antes de quaisquer outros europeus.
Não me espantaria nada que o próprio Pêro da Covilhã ali estivesse estado. Impedido de regressar a Portugal, casado com uma mulher local, proprietário de uma casa e de várias terras, tempo para isso certamente não lhe faltou.
A norte, no cimo das colinas avistam-se intrigantes conjuntos monumentais, totalmente em ruínas, obedecendo todos a um mesmo padrão arquitectónico: uma muralha de pedra muito alta que rodeia um castelo de planta quadrada. Associados a essas estruturas defensivas há ruínas de igrejas, o resultado das diversas missões jesuítas que a partir de 1557 foram entrando na Etiópia, e ali permaneceram até 1634. Esse legado reflecte, afinal, um contacto pioneiro e duradoiro que teve início com a viagem de Pêro da Covilhã e se prolongou ao longo de séculos. Missionários e soldados acompanhariam de perto os soberanos coptas etíopes na sua luta contra os muçulmanos, eritreus e outros. Numa fase posterior, a desastrosa acção evangelizadora dos primeiros conduziriam a fratricidas guerras civis que marcariam para sempre a História da Etiópia.
A partir de 1543, uma significativa comunidade mestiça luso-etíope passaria a viver nesse reino cristão provocando, inevitavelmente, alterações significativas num modo de vida que podemos classificar de nómada. Assim, de um reino gerido a partir de acampamentos com tendas – aí viviam os imperadores abexins – passaríamos a um reino controlado a partir de construções de pedra e cal, e de planta quadrangular com dois ou três pisos, à semelhança dos castelos europeus. Foram os portugueses que introduziriam na Etiópia a técnica da construção em pedra e argamassa, fenómeno que, ironicamente, atingiria a sua expressão máxima após a sua expulsão desse país, sendo então estabelecida a primeira capital sedentária, precisamente em Gondar.
Obra da autoria do padre arquitecto Pêro Pais, um dos descobridores da nascente do Nilo Azul e um dos primeiros europeus a provar o sabor do café, Gorgora era considerado um local de extrema importância, pois entre 1611 e 1618 serviu de local de residência ao imperador Susenyos. O pouco que resta da abóbada da igreja jesuíta é sustentado por alguns toros de madeira que evitam que tudo se desmorone. De todo o conjunto arquitectónico subsistem apenas algumas secções do palácio – dotado de pórtico e claustro, – da residência dos jesuítas e da catedral, edifícios que seriam concluídos por volta de 1622.
Nessa região, para além de Gorgora, sobressaem, pelo seu valor histórico, lugares como Guzara, Fremona, Azazo, Dabsan, Aringo e Debra Mai, só para citarmos alguns. E ficaria este apontamento incompleto se não mencionasse as diversas pontes na região atribuídas aos portugueses, junto às cataratas de Tisisat, de Alata e Avala-Andahé, ambas no Nilo Azul, isso para além, claro, de alguns usos e costumes dos etíopes, o resultado de um contacto com mais de 500 anos, efeméride assinalada em 2015.
Joaquim Magalhães de Castro