Austrália e o cinismo como arma
Sucessivos Governos australianos tudo fizeram para preservar a soberania indonésia em Timor-Leste. E, contudo, em 1999, Camberra viu-se obrigada a comandar uma força de manutenção de paz. Esse “salvamento relutante” deveu-se à pressão interna da opinião pública – elucidada por fugas de informação de carácter confidencial, como a conversa que ocorreu em Washington, em Fevereiro de 1999, entre o secretário de Estado Stanley Roth e o representante do Governo de Camberra, Ashton Calvert. Roth alertava na altura para a possibilidade do território vir a mergulhar numa onda de violência e da necessidade de enviar uma força de manutenção de paz internacional. Calvert, contudo, foi bem claro ao afirmar que o seu Governo se opunha a tal possibilidade. Alexander Downer apareceria na televisão a dizer que «a verdadeira necessidade era a de reconciliação entre as diferentes facções timorenses».
A nova ordem “suhartiana”, implementada à custa de massacres classificados pela própria CIA como “dos mais sangrentos do século XX”, foi aplaudida pelos políticos australianos. Não admira pois que tenham assobiado para o lado quando a Indonésia invadiu Timor-Leste em 1975. Reconheceriam oficialmente a usurpação em 1978. Convinha-lhes. Em 1979 iniciavam negociações para a exploração das reservas petrolíferas e de gás natural do “Timor Gap”. Em 1983, no seu primeiro acto como Primeiro-Ministro, o trabalhista Bob Hawke brindava com champanhe, felicitando Suharto: «Sabemos que o povo gosta muito de si». A razão de toda esta cordialidade eram as negociações para o acordo do “Timor Gap”, que seria assinado em Dezembro de 1985. John Howard atinge o poder em 1996. Dois anos depois, face à crise financeira asiática, entrava em agonia o regime de Suharto, que de novo sacrificou a vida de milhares de pessoas, entre elas inúmeros estudantes e mulheres e crianças de etnia chinesa. Mais uma vez se manteve muda e queda a diplomacia australiana. Com a chegada ao poder de Habibie, renascem as esperanças independentistas de Timor, e quando até as próximas autoridades indonésias começavam a falar de referendo, Alexander Downer, numa visita a Jacarta afirmava: «Não pensamos que a auto-determinação seja o caminho mais adequado para Timor-Leste». Com a crise a morder-lhe os calcanhares, Habibie via Timor como uma pedra no sapato da qual se queria desembaraçar e por isso simula uma retirada progressiva das tropas… Entretanto, a Austrália sugeria a Jacarta que prometesse uma autonomia para as calendas, questão de sacudir a pressão. Mesmo assim optou-se pelo referendo, contra a vontade do aparelho militar e contra a proposta australiana de adiar eternamente a questão. O terreno em frente, porém, estava minado. De modo a garantirem o escrutínio, as autoridades indonésias trataram de impedir qualquer envolvimento internacional no processo ao mesmo tempo que armavam as milícias. A Austrália foi o aliado estrangeiro encarregue de transmitir ao mundo o mito de que “a nação timorense não estava unida na questão da independência, mas de tal forma dividida entre facções que a única forma de evitar uma guerra civil era a presença do exército indonésio no terreno”.
Pode-se dizer que a campanha de terror das milícias começou com o massacre de Alas, em 1998, ainda com Suharto no poder. Este e outros massacres, como o de Liquiçá, em Abril de 1999, foram sempre minimizados e até justificados pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros australiano. A 5 de Maio desse ano era assinado nas Nações Unidas o acordo que decretava a realização de um referendo em Timor-Leste. A Indonésia, que a ONU, do alto da sua hipocrisia, designara responsável pela segurança do processo eleitoral, estava segura que iria ganhar o referendo. Gizara, porém, um plano B, caso as expectativas saíssem goradas. Nesse plano a Austrália evacuaria os estrangeiros do terreno de forma a que não houvessem testemunhas no decorrer das operações militares que se seguiriam tendo em vista a mudança do sentido do voto. Apesar de todo o clima de medo e intimidação, da presença de votantes vindos de Timor Oeste e de muitas das pessoas não acreditarem que o voto era secreto, 78,5 por cento dos timorenses optou pela independência.
Sem perder tempo, o exército indonésio pôs em marcha essa operação que mais não era que puro e duro terrorismo de Estado. O módulo de evacuação australiano, denominado operação “Spitfire”, servia na perfeição os objectivos de Jacarta. Milhares de observadores estrangeiros, jornalistas e outros, foram aerotransportados para Darwin. Sem testemunhas, o terror depressa se espalhou. Estima-se que mais de 250 mil pessoas tenham sido levadas à força para o outro lado da fronteira, numa tentativa de alterar a situação demográfica no terreno. Setenta por cento dos edifícios foram destruídos, aniquilando todas as infraestruturas do País.
Esta acção pretendia provocar uma retaliação das Falintil conduzindo-as a uma guerra convencional. Encontrado estaria assim o pretexto para anular o desejo expresso pela maioria dos timorenses. O plano parecia infalível. Felizmente, foi outro o desenlace.
Ao longo de todo este processo, a Austrália continuou a fazer declarações públicas que aliviavam a pressão da Indonésia. Um dia após o resultado das urnas, quando a maioria dos postos da UNAMET estavam sob ataque ou tinham fechado, Downer dizia: «Temos a impressão que o Presidente Habibie, o senhor Alatas e o general Wiranto estão a fazer o que deve ser feito. E alguns dos comandantes também estão a tentar fazer o que deve ser feito. Mas a verdade é que sempre houve e continuam a haver elementos descontrolados no seio das forças armadas indonésias».
A reacção da opinião pública local deixou Camberra sem alternativa. Para evitar uma crise política, a dupla Howard-Downer, que tudo fizera para evitar a entrada de forças de paz em Timor, ofereceu-se para liderar a operação. Bastaram quatro dias de negociações com a Indonésia. A 12 de Setembro, Habibie anunciava ao mundo a autorização de entrada às forças da ONU. A presença de Wiranto a seu lado era um claro sinal que os militares acatavam a decisão. É claro que a capitulação indonésia só aconteceu porque os Estados Unidos ameaçaram cortar a assistência económica.
Como se estava à espera, o desmantelamento das milícias, agora abandonadas à sua sorte, foi tarefa demasiado fácil.
Ramos Horta, logo após a “libertação”, depressa lembrou que um Timor independente entraria na «esfera da influência norte-americana», o que não é de estranhar em quem estava habituado a percorrer os corredores da ONU e a lidar com os políticos de Davos e quejandos. Mas esta é uma posição estrategicamente errada, pois os países pequenos tornam-se ainda mais vulneráveis quando entram no “mercado internacional de troca de ameaças”, como escreve o analista James Der Derian.
A pequenez de Timor tão pouco lhe permite levar a tribunal os arquitectos da limpeza étnica. Nomes como Wiranto, Feisal Tanjung, Mahidin Simbolon, Yunus Yosfiah, Zacky Anwar Makarim e Hendropriyono deveriam estar sentados no banco dos réus do Tribunal Internacional de Haia. Em vez disso, foram promovidos, medalhados e ostentam faustosas vivendas e gerem negócios lucrativos em Cairns, Perth, Darwin, Melbourne e Sydney.
A ligação entre o Ministério da Defesa australiano e a elite militar indonésia, interrompida em 1999, foi de novo retomada, e até reforçada na sequência dos atentados terroristas de Bali. Uma elite que, para além da sua face visível, opera no submundo em áreas tão diversas como a prostituição, a extorsão e o jogo.
Joaquim Magalhães de Castro