A vocação é um apelo à verdadeira liberdade
Jesus disse aos Seus apóstolos:«Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim.E aquele que não toma a sua cruz e não me segue, também não é digno de mim. Quem encontra a sua vida a perderá. Mas quem perde a vida por minha causa a achará» (Mateus 10, 37-39).
O chamamento de Jesus para segui-Lo, com todas as Suas exigências, parece cruel, desumano, irracional: por que devemos amá-Lo mais do que aos nossos familiares? Por que a necessidade de “tomar a cruz” e “perder a vida” por amor a Ele? Deus não deveria promover a nossa felicidade e auto-realização?
No século passado, o desenvolvimento da Psicologia destacou o papel do “ego” no desenvolvimento da nossa personalidade. Geralmente, o ego refere-se à percepção de um indivíduo sobre a sua identidade e valor próprio e, portanto, também influencia muito a maneira como nos relacionamos com os outros. Se não for controlado, o “ego” tende a inflamar demais e dominar as nossas vidas. Neste caso, degenera em “egoísmo”, que é um foco exagerado em si mesmo ou no próprio sentido de importância. Na busca por segurança e auto-satisfação, um “ego” doentio cria apegos excessivos a pessoas, posses ou mesmo ideias. Se uma pessoa passou por eventos traumáticos significativos, o “ego” também tende a criar paredes (mecanismos de defesa) para se proteger de vir a sofrer novamente danos emocionais, mentais e até físicos.
Mas a vida, com a sua imprevisibilidade e complexidade, desafia constantemente o sentimento de segurança criado pelo ego e relativiza os seus apegos através de experiências de separação, necessárias para o crescimento saudável da nossa personalidade e da nossa capacidade de fazer escolhas significativas, especialmente a um nível relacional.
A dor física e psicológica do parto simboliza os muitos processos de separação que vivenciamos ao longo da vida. Ir para o jardim-de-infância, a morte de alguém que amamos, o romper de um relacionamento, a perda de emprego: apenas exemplos das muitas separações, grandes e pequenas, que marcam as nossas vidas. Se mal administradas, estas experiências podem facilmente desencadear em nós o medo de abandono e, na tentativa de diminuir a ansiedade que isso causa, o estabelecimento de mecanismos de defesa como isolamento ou controlo excessivo de pessoas, ambientes, pensamentos e situações.
Nalguns grupos, o esforço dos seus membros para se sentirem mais seguros faz com que os “apegos do ego” criem um “ego colectivo” com um senso de identidade tão forte que a personalidade individual dos seus membros é colocada em segundo plano. Ora, os egos colectivos tendem a criar sociedades, organizações e até famílias tóxicas que ficam totalmente reduzidas ao seu próprio interesse, auto-protegendo-se.
Infelizmente, uma concepção errada da religião também pode contribuir para o reforço do ego (individual e colectivo) e a busca de interesses próprios, alienados do colectivo. Ao longo da sua vida, Jesus teve que lidar muitas vezes com o ego colectivo doentio do povo de Israel, que é sintetizado na rigidez dos fariseus e na mesquinhez dos sacerdotes e dos escribas, que usavam as tradições e a cultura como pretexto para inflamar o seu sentido de auto-importância e, assim, não respeitar a vontade de Deus.
Jesus não está interessado em reforçar o nosso “ego” doentio, seja individual ou colectivo, porque Ele sabe que a nossa felicidade e maturidade humanas só acontecem quando abrimos os muros protectores do ego à Sua Graça, Amor e Misericórdia. O chamamento de Jesus não é um acto de violência que destrói as nossas personalidades e relacionamentos, mas um convite para nos libertarmos dos apegos doentios que não nos permitem ir além dos limites estreitos dos interesses próprios do ego. É um caminho difícil, temos que admitir, que parece “carregar a cruz” e “perder a vida”. Mas só este caminho para a liberdade interior, que é o caminho para a santidade, traz verdadeira alegria e serenidade. O Papa Francisco refere na exortação apostólica Gaudete et exsultatenº 32: “Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças, nem vida nem alegria. Muito pelo contrário, porque chegarás a ser o que o Pai pensou quando te criou e serás fiel ao teu próprio ser. Depender d’Ele liberta-nos das escravidões e leva-nos a reconhecer a nossa dignidade”.
Portanto, a Igreja está confiante em reformular o convite de Jesus para O seguirmos, com toda a severidade, nas Suas exigências, porque é para o nosso bem e para o bem da Humanidade. O Catecismo da Igreja Católica afirma, nos pontos 2232 e 2233: “São importantes, mas não absolutos, os laços familiares. Quanto mais a criança cresce para a maturidade e autonomia humanas e espirituais, tanto mais a sua vocação individual, que vem de Deus, se afirma com nitidez e força. Os pais devem respeitar este chamamento e apoiar a resposta dos filhos para o seguir. Hão de convencer-se de que a primeira vocação do cristão éseguir Jesus: «Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim»(Mt., 10, 37). Tornar-se discípulo de Jesus é aceitar o convite para pertencer àfamília de Deus, para viver em conformidade com a sua maneira de viver: «Todo aquele que fizer a vontade do meu Pai que está nos céus, é que é meu irmão e minha irmã e minha mãe»(Mt., 12, 50). Os pais devem acolher e respeitar, com alegria e acção de graças, o chamamento que o Senhor fizer a um dos seus filhos, para O seguir na virgindade pelo Reino, na vida consagrada ou no ministério sacerdotal”. E isto também vale para qualquer outra vocação: tudo são convites para nos tornarmos mais livres, mais amorosos e mais vivos.
Pe. Paolo Consonni, MCCJ