אֵלִי אֵלִי לָ֫מָּה שְׁבַקתַּנִי

De Profundis

Todos os anos, por estas alturas, somos confrontados com aquela enigmática interpelação de Jesus ao Pai quando no momento da sua morte exclama: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?». As explicações para este aparente lamento vão desde considerar que Cristo, porque carregava sobre si o pecado do mundo, foi amaldiçoado por Deus no momento da sua morte, até considerar que Este não se lamentava de todo, apenas a recitava o salmo 22, salmo que tem, por assim dizer, um final feliz. Parece evidente que estas explicações são, no mínimo, insuficientes.

«Tomou sobre si as nossas fraquezas e carregou as nossas dores» (Is 53:4).

Para entendermos o verdadeiro significado destas palavras de Jesus, é necessário inseri-las no contexto da sua Paixão e Morte na Cruz, mistério que abre caminho para a sua gloriosíssima Ressurreição.

Apesar da Ressurreição ter um papel absolutamente central no Dogma Cristão, uma vez que confirma a divindade de Jesus, esta não deve, porém, relegar a Cruz para segundo plano já que, de uma certa perspectiva, a morte de Jesus representa, dentro mistério da Encarnação, algo mais excepcional do que a própria Ressurreição. De um Deus não se esperaria outra coisa que não fosse ser capaz de ressuscitar de entre os mortos, já mais difícil é aceitar que um Deus que se deixe matar pelas suas próprias criaturas depois de ser humilhado da forma como Jesus foi, tendo sido insultado, chicoteado, cuspido, coroado de espinhos, obrigado a carregar a cruz às costas pelas ruas enquanto era ultrajado pelas multidões, e no final, embora inocente de qualquer falta, ter sido crucificado entre dois ladrões como um criminoso qualquer. E tudo isto tendo em conta que os relatos que temos destes eventos nem de longe farão justiça àquilo por que Jesus terá passado, pois tais horrores não cabem em duas ou três páginas de texto.

 

A Cruz é coisa do passado! Tirem isso daí

Nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial o mundo conheceu uma transformação radical nas suas estruturas sociais e económicas. Em consequência, as pessoas foram possuídas por um optimismo e uma esperança tais no futuro que vinha aí, que era como se de uma nova Idade de Ouro se tratasse.

Ora, nesta nova Idade d’Ouro não há mais lugar para a Cruz de Cristo, pois o mal já não existe, não há pecado, não há vício; oração, penitência e confissão, p’ra quê? O Purgatório e o Inferno não tiveram outro remédio senão fechar portas e declarar falência. Deus já não é Deus, mas se Ele insistir em andar por aí, que seja como um amigo, um companheiro, ou um desses pais modernos e que fazem as vontades todas aos filhos e que lhes compram tudo porque querem que eles tenham tudo o que eles na sua infância não tiveram.

Neste novo El Dorado não admira nada que a Cruz se tenha tornado desnecessária e sem sentido; o melhor mesmo é pô-la num museu ao lado d’outros objectos do passado para ser admirada de vez em quando. Sempre podemos substitui-la por uma imagem de Cristo Ressuscitado com os braços abertos! Isso da cruz já passou! Nós agora temos computadores; o homem até já foi à Lua. Quem é que vai querer ir atrás dum homem espetado numa cruz? Na era da informação já ninguém aceita isso. Ok, pronto!, se tiver mesmo que ser, podemos ter a cruz, o crucifixo é que não, que isso assusta os miúdos! Já chega desta disparatada de sofrimento e sacrifícios; quem é que precisa disso? Temos de ser positivos, olhar p’rà frente! A ressurreição é a comemoração da vida, não da morte! Temos de viver e desfrutar do mundo que Deus criou p’ra nós! Deus não quer sacrifícios! Ele quer que eu seja feliz!

Pois é, mas e aqueles que não são felizes?, aqueles para quem o mundo é mais negro que dourado?, aqueles que ainda vivem na velha Idade do Ferro? Será que Deus não quer que eles sejam felizes? Disparate!, claro que sim! Para esses temos de lutar por um mundo melhor, um mundo onde reine a justiça social! Ok, tudo bem, mas e aqueles a quem essa tal justiça social nunca chegará?, ou aqueles a quem a revolução vai chegar já demasiado tarde? Então e esses? Pois…

A verdade é que basta darmos um passeio pela nossa cidade, ou por qualquer cidade, para facilmente nos apercebermos que esta nova era de liberdade, igualdade e fraternidade não passa de uma ilusão em que só alguns podem viver. Não é preciso procurar muito para encontrar a pobreza que as luzes dos casinos tentam ocultar, ou a prostituição que nem sequer se tenta esconder, é boa p’rò turismo!, ou aqueles desgraçados que, quando têm sorte, lá recebem umas ninharias para levantar do chão os arranha-céus de vidros que atrapalham o nosso gozo da paisagem. Bem, talvez isso seja assim porque o progresso ainda não se fixou aqui de pedra e cal. O futuro será, com certeza, melhor! É possível, mas o que dizem os jornais, ou a rádio ou a TV acerca desses lugares onde o progresso já assentou arraiais. O que é que há lá? Refugiados da guerra civil na Síria, ataques bombistas em Bruxelas, Paris, Turquia e arredores, a defesa do direito à eutanásia e ao aborto, pena de morte, branqueamento de capitais oriundos da prostituição, pedofilia, drogas, venda ilegal de armamento, e da escravatura, que está outra vez na moda!, e a lista bem podia continuar porque o menu do progresso é generoso, mas isto já dá uma ideia do que a casa gasta.

Se calhar, o mundo não é tão dourado assim…

 

Ave, Crux, spes unica

Para os que não podem senão viver no mundo tal como ele realmente é, a cruz continua a ter hoje o mesmo significado que tinha aqui há cem anos, ou na Idade Média ou no Império Romano. A realidade à nossa volta pode ter mudado muito, mas o Homem mantêm-se exactamente o mesmo, a sua natureza não permite que ele mude. Para esses é a Cruz que dá significado aos sofrimentos do dia a dia; é a cruz de todos os dias que nos associa ao Redentor no momento da sua morte e, associados à sua morte, temos a Esperança que Ele nos associe à sua Ressurreição.

 

Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem

As dores e os sofrimentos da vida presente tornam-nos participantes da Cruz de Cristo que entregou a sua vida pela redenção do género humano e pela salvação de cada um de nós; por sua vez Jesus, através da sua Cruz não só participa das nossas dores e dos nossos sofrimentos como também experimenta a vulnerabilidade da nossa natureza, essa mesma natureza que o pecado danificou. Deste modo, nós pecadores estamos todos pregados com Cristo na cruz.

Os sofrimentos do Calvário vão muito além das mãos e dos pés rasgados pelos cravos ou da agonia de estar suspenso sob o peso do seu próprio corpo por mais de três horas enquanto injuriado pelos judeus que passam. Mais que isso, no altar da Cruz Jesus experimenta o abandono, a rejeição, a angústia, a humilhação, até o desespero que ele, embora sendo Deus, experimenta através da sua natureza humana que, enquanto Homem, partilha connosco. Ao assumir totalmente e sem reservas a nossa débil condição humana – igual a nós em tudo excepto no pecado –, Jesus abre a porta para a nossa divinização; Cristo participa da nossa humanidade para que nós possamos participar da sua divindade. Pregado à cruz, a Humanidade de Jesus completa-se, atinge a sua plenitude, mas é também na Cruz que Jesus, «desprezado e abandonado» (Is 53:3) é totalmente despojado da sua dignidade humana. E assim, apesar de ser verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, duas naturezas hipostaticamente unidas numa só pessoa, é Cristo o Homem que das profundezas da agonia do Calvário faz sua a voz de todos os que sofrem quando brada ao Pai: אֵלִי אֵלִי לָ֫מָּה שְׁבַקתַּנִי «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?».

“Tibi Christe!”

Roberto Ceolin 

Universidade de São José

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