Beirute, uma cidade ameaçada
Por ocasião dos recentes atentados em Paris queixou-se o mundo árabe, e com razão, do pouco relevo dado aos ataques suicidas que deixaram Beirute em estado de choque, um dia antes. Não esqueçamos que o que está em causa aqui é a tentativa de penetração do Estado Islâmico (EI) num país onde sempre houve uma pluralidade religiosa. É esse Líbano, laico e contraditório, que o EI quer aniquilar.
Conheci Beirute numa época em que às oito da manhã, pontualmente, paravam os ventiladores do tecto e desligavam-se os ares condicionados, pois a energia eléctrica era cortada para só voltar a ser restabelecida por volta do meio dia. “Cortesia” da aviação israelita, responsável pela destruição dos dois transformadores eléctricos da subestação de Jamhour que abastecia a capital libanesa. Desde então Beirute – que registava temperaturas na casa dos 35/40 graus centigrados – vivia com cortes de energia sucessivos ao longo do dia. Enquanto isso, quem não quisesse subir sete ou oito andares a pé que comprasse um gerador ou electricidade a quilowatt à “central eléctrica” gerida pelo desenrascado vizinho do lado, aquele que vivia paredes meias com aqueloutro barbudo bem vestido que diariamente embarcava no seu luxuoso Mercedes seis ou sete beldades russas e romenas que animavam as noites nos muitos clubes nocturnos que continuavam a facturar forte e feio apesar da falta de luz. Quem, pelos vistos, continuava com dificuldades em facturar eram os proprietários de dois restaurantes chineses situados num bairro privilegiado de Hamra, com as portas fechadas há vários meses. Uma folha A4 informava os clientes que “devido à falta de energia, estamos encerrados por tempo indefinido”.
Ao cair da noite, na Avenida de Paris, principal esplanada de Beirute, assistia-se a um verdadeiro desfile de nikes, bosses e demais símbolos do capitalismo. Miúdos e graúdos em patins de linha, a falar Inglês com forte acento ianque, faziam tangentes à multidão que cada fim de tarde enchia as margens do Mediterrâneo. Beirute orgulhava-se dos seus inúmeros estabelecimentos de comida rápida e dos seus dois Hard Rock, ambos com gigantescas réplicas de guitarras eléctricas à entrada. «Beirute deve ser uma das únicas cidades do mundo com essa particularidade», afirmava um dos residentes. Em absoluto contraste, partilhando as lajes do passeio, vendedores ambulantes transportavam tremoços em carrinhas de bebé e espigas de milho cozido em mesas com rodas, enquanto ciclistas da concorrência improvisavam mostruários, montados no selim, com os típicos pães libaneses com um dos lados furados e muitas sementes de sésamo sobre a crosta. Todos esses vendedores eram emigrantes sírios, já que os libaneses, apesar da crónica falta de emprego e dos constantes queixumes, mostravam-se pouco disponíveis para tarefas que envolvessem esforço físico.
Para além desse seu lado consumista, Beirute assumia-se como “capital cultural do mundo árabe”. Sob os auspícios do recém-eleito Presidente da República, o general Emile Lahoud, e por iniciativa do Ministério da Cultura, a exposição “Arquivos Nacionais, Memória Colectiva” mostrava pela primeira vez ao grande público, manuscritos e impressos antigos de teologia, astrologia e linguística. Várias exposições de pintura e de artesanato encontravam-se patentes em diferentes galerias de arte. Espectáculos de rua – mimos, malabaristas, mágicos, músicos, contorcionistas e dançarinos – eram apostas fortes nos meses de Verão. O Retourameont France trouxera de Paris a sua “dança vertical”, efectuada nas paredes dos prédios com ajuda de cordas. E em Beirute havia “palcos” de sobra para esse extravagante género artístico, muitos deles ainda crivados de balas… Dança, ópera, teatro, desfiles de moda, colóquios e o primeiro festival do filme documental do mundo árabe. Quanto a literatura, Verão significava livros em saldos.
As cidades históricas de Baalbeck, Tiro, Biblos, Bettadine e Deir-Al Keimar faziam questão de incluir nos seus festivais de Verão figuras de topo no panorama musical internacional de fazer inveja a muitas das cidades europeias. O tenor Plácido Domingo, a soprano June Anderson, orquestra e coro da Ópera de Kirov, as Filarmónicas de Varsóvia e da Arménia e uma versão futurista do Romeu e Julieta – coreografado por Enki Bilal, importante nome da banda desenhada. Carmen Linares, a trupe de Eva Yerbabuena e El Chato trazem noches flamengas ao Médio Oriente, já familiarizado com esses ritmos. Também conhecia bem o arménio naturalizado francês Charles Aznavour e o son cubano de Tito Puente. Na pop, Vanessa Ma; no jazz, os fabulosos Jonh McLaughlin (guitarrista) e Zakhir Hussain (percussionista). Isto, para além das referências fundamentais da música tradicional libanesa como Marcel Khalife, Charbel Rouhana ou Rabih Abou Khalil, todos eles responsáveis por arrojados projectos de fusão com músicos de outras origens geográficas e universos musicais.
Menos famosos, outros festivais marcavam o estio nas cidades e vilas de província libanesas. E todas eles, por mais incrível que parecesse, com um variado número de patrocinadores. «Esta abundância de manifestações culturais tem muito a ver com o carácter do libanês», informava um entusiasta do associativismo cultural. «Somos grandes apreciadores de manifestações artísticas», cada vez mais frequentes «pois servem de catarse para os tempos difíceis que temos vivido e continuamos a viver».
Para as autoridades oficiais era “chegada a altura de devolver a Beirute o seu estatuto de polarizador cultural do Médio Oriente”, estatuto que detinha antes da guerra civil. “Beirute não pode voltar ser um local de difusão cultural se não for simultaneamente um local de acolhimento e de circulação de diferente gente e ideias”.
É essa Beirute renascida das cinzas, tolerante e dinâmica, que os mercenários do Estado Islâmico querem voltar a derrubar.
Joaquim Magalhães de Castro