Sempre pensada para curar
Esta singela igreja foi fundada em 1966, na Estrada de Nossa Senhora de Ká-Hó, em Coloane, no extremo meridional do território de Macau. Longe do bulício e da azáfama da Península de Macau e da zona do Cotai, e da cintilante modernidade e materialidade da urbe, na sua marcha de progresso e desenvolvimento, mas já perto do aeroporto, como também do pólo industrial de Ká-Hó, surge a vila homónima, ou Vila de Nossa Senhora, por entre o que resta da agricultura em Macau, num ambiente campestre e quase bucólico, defendido pelo Altinho e pelo Delta do Rio das Pérolas.
A Vila de Nossa Senhora, pois localizada em Ká-Hó, representa um importante património histórico, cultural e arquitectónico que testemunha a história social e humanitária da região. Este conjunto patrimonial, composto pela antiga Leprosaria de Ká-Hó, pela igreja de Nossa Senhora das Dores e de outras construções acessórias, constitui o único testemunho de uma antiga leprosaria que se conservou até ao presente; um testemunho vivo da história do tratamento da lepra no Extremo Oriente e da propagação do humanismo ocidental nesta região do mundo.
A história da prevenção e tratamento da lepra em Macau remonta ao Século XVI, quando em 1568 o bispo D. Belchior Carneiro criou uma leprosaria dependente da Santa Casa da Misericórdia de Macau. Devido às necessidades de tratamento em isolamento, esta primeira leprosaria foi localizada no exterior das muralhas da cidade, no que é actualmente conhecido como o Bairro de São Lázaro.
Com o desenvolvimento urbano de Macau na segunda metade do Século XIX, os leprosos foram transferidos para Pac Sa Lan, na ilha da Montanha (Hengqin). Em 1883, após a destruição da Leprosaria de Pac Sa Lan por um tufão, e também devido à necessidade de separar os doentes masculinos e femininos, o Governo português de Macau construiu novas leprosarias em Pac Sa Lan e em Ká-Hó, na ilha de Coloane. A Leprosaria de Ká-Hó, concluída em 1885, acolhia inicialmente apenas doentes do sexo feminino.
Em 1929, o Governo reconstruiu a Leprosaria de Ká-Hó. As novas instalações, inauguradas em 1930, eram compostas por cinco pavilhões independentes e uma capela de estilo arquitectónico ecléctico, distribuídos de acordo com a topografia numa pequena elevação junto ao mar, na costa Leste de Coloane, formando um arruamento em arco. Os pavilhões eram caracterizados por amplas varandas cobertas, de inspiração clássica, que se abriam sobre a paisagem. Cada pavilhão era servido por um anexo no qual se localizavam a cozinha e as instalações sanitárias. O acesso ao conjunto de habitações era feito por mar, através de um cais construído para o efeito.
No ano de 1950, os homens com lepra que estavam em Pac Sa Lan foram igualmente transferidos para Ká-Hó, na medida em que havia a intenção de se proceder à ampliação da vila na ilha da Montanha.
Embora a Leprosaria de Ká-Hó fosse gerida e financiada pelo Governo, a diocese de Macau tinha um papel importante nos cuidados prestados aos leprosos. Existem registos desde o início do Século XX de visitas periódicas de religiosos prestando serviços assistenciais. Um marco fundamental na história da Vila de Nossa Senhora foi a chegada do padre Gaetano Nicosia, dos Salesianos de D. Bosco, em 1963. Sob a sua iniciativa, o local mudou de nome, passando a designar-se “Vila de Nossa Senhora”. O padre Nicosia nasceu a 3 de Abril de 1915, em San Giovanni la Punta (Catania – Sicília), em Itália, e rumou para o Oriente com vinte anos de idade, estabelecendo-se em Hong Kong, onde iniciou a sua missão religiosa a 11 de Novembro de 1935.
O padre Nicosia desenvolveu todos os esforços no sentido de melhorar as condições de vida dos leprosos de Ká-Hó e graças ao seu longo e contínuo trabalho junto dos leprosos durante 48 anos (1963-2011) conseguiu que muitos destes recuperassem e fossem reintegrados na sociedade, apesar do estigma social associado à doença, tendo ficado conhecido como o “Anjo dos leprosos”. Tanto o padre Nicosia como a diocese de Macau tiveram um papel decisivo nesta acção altamente meritória e humanista.
Graças às ajudas do Papa Paulo VI, do Governo e da diocese de Macau, e por iniciativa do padre Nicosia, construiu-se uma nova igreja dedicada a Nossa Senhora das Dores, que foi inaugurada em 1966, durante o bispado de D. Paulo José Tavares. A antiga capela foi transformada em sala recreativa. A construção da igreja revelou-se um autêntico desafio logístico. Na realidade, os materiais tiveram de ser transportados de barco para Coloane, pois não havia vias terrestres que fizessem a ligação com a Península de Macau e para além disso a zona da igreja foi separada da vila, pois os trabalhadores, muitos dos quais ficaram a viver em Ká-Hó durante a construção, tinham receio que os leprosos se aproximassem.
A influência do Concílio Vaticano II é determinante na concepção e edificação da capela. A igreja de Nossa Senhora das Dores insere-se na arquitectura religiosa do Movimento Moderno internacional, revelando influências da experimentação espacial presente em igrejas construídas após o Concílio do Vaticano II (1961-1965). As modificações da liturgia implementadas pelo Concílio reflectem-se em novas concepções do espaço religioso. A igreja comporta um grande salão, com o altar-mor posicionado ao centro da Assembleia e voltado para os fiéis, como um anfiteatro, estabelecendo uma relação mais próxima entre estes e o sacerdote.
O corpo principal da igreja apresenta uma inusitada secção triangular, acentuada pela expressividade da estrutura de betão armado que se prolonga até ao solo. O conjunto é rematado pela presença da torre sineira, colocada ao centro do alçado Norte, marcando o posicionamento interno do altar. A igreja tem a forma de uma grande tenda e – por desejo do padre Nicosia – dispõe de treze portas que simbolizam Jesus Cristo e os seus Doze Apóstolos. O altar não está colocado ao fundo da igreja, mas num dos lados para que se tivessem sete portas de um lado e seis do outro. É por isso conhecida como a “igreja de portas ímpares”.
A concepção, num estilo modernista, foi do engenheiro e escultor italiano Francisco Messima, tendo tido, ainda, a contribuição de Leopoldo Goffredo Acconci, outro escultor italiano. A construção ficou a cargo do empreiteiro Oseo Acconci.
Não existe já a leprosaria. Quanto à igreja de Nossa Senhora das Dores, está classificada pelo Governo de Macau como “edifício de interesse arquitectónico”, enquanto o conjunto da Vila de Nossa Senhora está classificado como “conjunto” no âmbito dos bens imóveis.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa
Photo Credits: @ João Botas